Corte costituzionale portoghese, decisione n. 359 del 2009

ACÓRDÃO N.º 359/2009

 

Processo n.º 779/07

1ª Secção

Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira

 

 

 

 

 

ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

                                                                                                                      

 

I – Relatório

 

            1. A.  e B.  recorrem do acórdão proferido na Relação de Lisboa em 15 de Fevereiro de 2007 com invocação do disposto nas alíneas b), c) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro – Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).

            Para o efeito, em suma, invocaram:

 

     «(…) De facto, 

28.º- e de acordo com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, desde já as recorrentes esclarecem que, com o presente recurso, pretendem que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade e a desconformidade com os mais básicos princípios constitucionais,

29.º- atento o disposto nas alíneas b), c) e f) do nº 1 do artigo 70.º da Lei do T. Constitucional, ao abrigo das quais o presente recurso é interposto,

30.º- e ainda atento o disposto no artigo 67.º da Lei do Tribunal Constitucional (com os efeitos previstos no artigo 68.º seguinte),

31.º- designadamente a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 1577.º, da alínea e) do artigo 1628.º ambos do Código Civil,

32.º- e também das normas que do todo coerente deste diploma legal lhes sejam directa ou indirectamente consequentes ou delas decorram.

33.º- Tudo isto por manifesta violação do disposto no artigo 13.º da Constituição e do “Princípio da Igualdade” que ali é estabelecido, muito principalmente no que toca à expressão “ou orientação sexual” contida na parte final do n.º 2 daquela disposição constitucional,

34.º- por manifesta violação do disposto no artigo 36º da Constituição e do “Princípio da Liberdade de Constituir Família” e também do “Princípio da Liberdade de Contrair Casamento” que ali são estabelecidos, muito principalmente no que toca aos nº 1 e 3 daquela disposição constitucional,

35.º- por manifesta violação do disposto no artigo 16º da Constituição, e do “Âmbito e Sentido dos Direitos Fundamentais” que ali é estabelecido, muito principalmente no que toca ao n.º 2 daquela disposição

36.º- que obriga a que «os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem»,

37.º- por manifesta violação do disposto no artigo 18º da Constituição, e da previsão da “Força Jurídica” que ali é preconizada para os preceitos constitucionais, muito principalmente no que toca ao n.º 1 daquela disposição,

38.º- que estabelece que “os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”,

39.º- por manifesta violação do disposto no artigo 26º da Constituição, que estabelece a garantia constitucional de “Outros Direitos Pessoais”, muito principalmente no que toca ao n.º 1 daquela disposição,

40.º- que estabelece que “a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal… e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”,

41º- e também por clara e manifesta violação do disposto no artigo 67.º da Constituição, que estabelece a garantia e a defesa constitucional da «Família», muito principalmente no que toca ao n.º 1 daquela disposição,

42.º- que estabelece que “a família, como elemento fundamental da sociedade tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal do seus membros”.

Na verdade,

43.º- todas estas questões de inconstitucionalidade material constituem a base fundamental do inconformismo das recorrentes com a decisão do Sr. Conservador da 7.ª Conservatória do Registo Civil e, depois, com as decisões jurisdicionais que se lhe seguiram,

44.º e, por isso mesmo, foram desde logo suscitadas quer nas suas alegações do recurso interposto para o Tribunal de 1.ª instância (cfr. artºs. 33.º e segs. das alegações) quer nas suas alegações do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa (cfr. artºs. 40 e segs. das alegações).

Mas, e por outro lado,

45.º- também por violação do disposto nos artigos 280.º (n.ºs 1, 2 e 6) e 283.º da Constituição, este último que prevê a possibilidade da «Inconstitucionalidade Por Omissão», decorre o absoluto inconformismo das recorrentes,

46.º- principalmente tendo em vista as determinações programáticas que, depois de observado o cumprimento do disposto na parte final do artigo 13.º da Constituição, deveriam inquestionavelmente ter sido levadas a cabo e obedecidas pelos órgãos com poder legislativo para tal competentes,

47.º- e que são as que constam no n.º 2 do artigo 18.º, no n.º 2 do artigo 26.º, no n.º 2 do artigo 36.º e n.º 2 do artigo 67.º, todos da Constituição.

De facto,

48.º- nunca poderiam as recorrentes conformar-se com a manifesta ilegalidade de qualquer decisão (jurisdicional ou administrativa) que, também por omissão, violasse as normas ou os princípios constitucionais vigentes,

49.º- nomeadamente, e para além das normas que acima se citaram, ao não tornar consequente e a não dar correspondência prática à inequívoca vontade do legislador constitucional de 2004 de não permitir qualquer forma de discriminação, qualquer que ela fosse,

50.º- e que, por isso mesmo, decidiu na Lei Constitucional nº 1/2004 completar a formulação do “Princípio da Igualdade” acrescentando significativamente ao artigo 13º da Constituição a expressão “ou orientação sexual”.

Na verdade,

51.º- e para além das questões de inconstitucionalidade material que acima se deixaram explícitas, sempre constituíram também base fundamental do inconformismo das recorrentes as manifestas e inequívocas questões de ilegalidade fundamental e de inconstitucionalidade por omissão

52.º- e que, por isso mesmo e de igual modo, foram desde logo suscitadas quer nas suas alegações do recurso interposto para o Tribunal de 1.ª instância (cfr. arts. 91.º e segs.) quer nas suas alegações do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa (cfr. arts. 102.º e segs.).

Termos em que

observados que estão os formalismos legais para tal previstos, porque para tal as recorrentes têm legitimidade, estão em tempo e estão representadas por advogado (cfr arts. 72.º n.º 1 al. b), 75.º e 83.º da Lei do T. Constitucional), requerem a V. Exa. que desde já considere validamente interposto recurso da decisão deste Tribunal da Relação de Lisboa para o Tribunal Constitucional, seguindo-se os ulteriores termos, sendo certo que as respectivas alegações que o motivarão serão produzidas já no Tribunal ad quem, de acordo com o disposto no artigo 79.º da Lei do Tribunal Constitucional e no prazo aí previsto

 

            2. Admitido o recurso no Tribunal recorrido e remetido o processo ao Tribunal Constitucional, onde foi distribuído, o relator solicitou às recorrentes, nos termos do n.º 5 do artigo 75.º-A da já referida LTC, os seguintes esclarecimentos:

 

     a) quanto ao recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da mesma Lei, a indicarem o exacto sentido das normas cuja conformidade constitucional pretendem questionar, com identificação precisa dos preceitos legais em que se inscrevem;

     b) quanto ao recurso interposto ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do aludido artigo 70.º, a indicarem qual a norma ou normas cuja aplicação foi recusada e qual a lei com valor reforçado que fundamentou essa recusa;

     c) quanto ao recurso interposto ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do mesmo artigo 70.º, a identificarem a norma ou norma legais aplicadas na decisão recorrida, especificando o fundamento dessa ilegalidade, nos termos previstos na referida alínea.

 

 

            Em resposta, disseram as recorrentes:

 

                « (…)

                I – Quanto ao recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro:

 

Neste particular, isto é, no que se refere ao recurso interposto da decisão que aplicou uma norma «cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo», pretendem as Recorrentes reagir contra a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que indeferiu o recurso interposto pelas Recorrentes da decisão proferida pelo Tribunal Cível de Lisboa o qual, por sua vez, havia também indeferido o recurso por si interposto da decisão tomada pelo Conservador da 7.ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa.

De facto, no dia 1 de Fevereiro de 2006 ambas as Recorrentes apresentaram-se na 7.ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa, onde requereram que fosse dado início ao seu processo de casamento — o seu casamento uma com a outra.

Contudo, por despacho datado do dia seguinte o Sr. Conservador da 7.ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa indeferiu liminarmente tal pretensão das requerentes explicando que «a concretizar-se o objectivo do mesmo — o casamento — levaria a uma clara e frontal violação do normativo do artigo 1577.º do Código Civil», já que é certo que as Requerentes são ambas do sexo feminino.

Com efeito, reconhecendo-se embora que ambas as Recorrentes são inequivocamente dotadas de personalidade e capacidade jurídica e judiciária e, por isso, de plena capacidade matrimonial, tal como esta vem exigida nos artigos 1596.º e 1600.º do Código Civil, ainda assim foi-lhes recusada a pretensão de concretizarem a celebração de um contrato de natureza meramente civil face ao teor da definição legal e do conceito de contrato de casamento contida no artigo 1577.º do Código Civil.

Tal norma define o “casamento” como “o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida”, sendo ainda certo que a alínea e) do artigo 1628.º do Código Civil fere de inexistência jurídica o casamento celebrado entre duas pessoas do mesmo sexo.

Ora, foi precisamente por não se conformarem com esta decisão que as Recorrentes dela reagiram, sempre, desde logo e desde o primeiro momento, com o fundamento na inconstitucionalidade material de ambas as citadas normas do Código Civil (e também das demais normas que, ainda que indirectamente ou apenas de forma semântica lhes dessem correspondência).

Assim, é aqui precisamente, e correspondendo agora mais exactamente ao convite de aperfeiçoamento formulado por V. Exa., que se encontram as normas cuja conformidade constitucional pretendem questionar, assim, e simultaneamente, identificando com precisão os preceitos legais em que se inscrevem.

De facto, parece às Recorrentes que é manifesta a desconformidade constitucional das citadas normas do Código Civil, na medida em que mereceu clara, inequívoca e expressa consagração constitucional não só a protecção à Família (cfr. art. 67.º da Constituição), como também o princípio fundamental (cfr. art.º 36.º da Constituição) de que “todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade”.

Ora, tratando-se no caso concreto dos presentes autos de duas cidadãs no uso de seus plenos direitos cívicos, e gozando ambas de plena personalidade e capacidade jurídica e judiciária, inequívoco será de que, também elas, têm direito a ter acesso a estas duas formulações constitucionais: de que “têm o direito de constituir família” e de que têm o direito “de contrair casamento em condições de plena igualdade”.

Contudo, o que é facto é que sendo as Recorrentes homossexuais, isto é, tendo uma determinada “orientação sexual”, a sua noção de “família” e a forma como a pretendem “constituir” é precisamente uma com a outra, não obstante, e até, aliás, precisamente por serem do mesmo sexo, isto é, não obstante terem esta “orientação sexual” e precisamente porque a têm.

Do mesmo modo e pelos mesmos motivos e circunstâncias, querem as Recorrentes exercer o seu direito constitucional a “contrair casamento em condições de plena igualdade”, obviamente uma com a outra, apesar de serem do mesmo sexo, porque, como foi dito são homossexuais, isto é porque têm esta “orientação sexual”.

Posto isto, clara se toma a inequívoca desconformidade constitucional das normas que as Recorrentes pretendem nos presentes autos questionar e ver declarada por esse Tribunal Constitucional e que, tal como V. Exa. as convidou a fazer, desde já clarificam e esclarecem que isso sucede no exacto e preciso sentido em que, definindo o artigo 1577.º do Código Civil «casamento» como sendo “o contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida”, então, a mera inscrição da expressão “de sexo diferente” contida no corpo desse artigo (bem como a consequência a prevista na alínea e) do artigo 1628.º do Código Civil que fere de inexistência jurídica o casamento celebrado entre duas pessoas do mesmo sexo), significa desde já e imediatamente que, desde logo, ela tem como efeito, ao contrário do que é constitucionalmente garantido à generalidade dos cidadãos portugueses, vedar às Recorrentes o acesso a um determinado “bem jurídico” cujo acesso, também a elas, devia estar garantido.

Mas mais: como se não bastasse, ou como se dúvidas ainda houvesse, o artigo 13.º da Constituição na sua mais que completa formulação do “Princípio da Igualdade” e da manifesta “força constitucional” que pretende dar à proibição de todas e quaisquer formas de discriminação dos cidadãos, por muito que tantos achem que isso nem seria até necessário, o que é facto é que ele contém agora uma “interpretação reforçada e inequívoca” que lhe advém do aditamento feito por vontade do legislador constitucional de 2004 que decidiu (na Lei Constitucional n.º 1/2004) completar a formulação do “Princípio da Igualdade” acrescentando ao artigo 13.º da Constituição a expressão “ou orientação sexual”.

Em suma, aqui está precisamente, pensam as Recorrentes (que melhor ainda o explicarão se tal for porventura entendido e lhes for comandado), tal como resulta do convite de aperfeiçoamento que receberam, “o exacto sentido das normas cuja conformidade constitucional pretendem questionar, com a identificação precisa dos preceitos legais em que se inscrevem”.

Porque é essa conformidade constitucional que as Recorrentes pretendem que esse Tribunal Constitucional finalmente lhes reconheça.

E que, assim, se ponha termo à persistente e discriminatória afirmação de que, por serem homossexuais, as Recorrentes têm uma capacidade jurídica inferior à dos demais cidadãos.

De facto, sendo a “capacidade jurídica» definida unanimemente pela doutrina como «a quantidade de direitos e obrigações de que cada um é susceptível de ser titular”,

o que é facto é que, por serem homossexuais, não tem sido garantido e reconhecido às Recorrentes, tal como o é feito e formulado em função da “generalidade dos cidadãos”, o acesso à mesma “quantidade de direitos”, como se as Recorrentes não fizessem também parte desse conceito de “generalidade dos cidadãos” ou como se não estivesse constitucionalmente vedado, em formulações constitucionais várias, de forma directa ou indirecta, mas nem por isso menos inequívoca, qualquer forma de discriminação entre os cidadãos, incluindo, agora expressamente, em função da sua “orientação sexual”.

Assim, porque baseadas em normas inequivocamente desconformes com os princípios e as formulações constitucionais que ao caso respeitam, estão irremediavelmente feridas de ilegalidade, porquanto carecem de qualquer conformidade constitucional as decisões jurisdicionais anteriormente proferidas nos presentes autos e que decidiram manter a decisão do Sr. Conservador da 7.ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa, que indeferiu a pretensão das Requerentes.

Mas, e como se não bastasse a incompreensível decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que decidiu julgar conformes com o texto constitucional as normas constantes dos artigos 1577.º e 1628.º do Código Civil, também, ineditamente, não mereceu — até agora — qualquer censura jurisdicional esta peregrina afirmação contida na fundamentação da decisão proferida pelo Sr. Conservador da 7.ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa.

Pasme-se:

“Não compete ao conservador do Registo Civil avaliar da constitucionalidade de normas, antes existe Tribunal próprio para o efeito”.

Ora, que “existe tribunal próprio para o efeito”, é verdade. É aliás desse “tribunal próprio para o efeito”, precisamente este Tribunal Constitucional, que as Requerentes esperam a JUSTIÇA de lhes verem ser reconhecidos os seus direitos de cidadania em termos e condições de igualdade com todos os demais cidadãos.

Mas, ao contrário do que pensa o Sr. Conservador da 7.ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa, e por muito que, isso não tenha, por incrível que pareça, merecido ainda o mínimo reparo jurisdicional, o que é verdade é que, de facto “compete ao conservador do Registo Civil avaliar da constitucionalidade de normas”!!!

E compete, porque assim o determina o artigo 18.º da Constituição na formulação que resulta dos três números que o compõem, mas de que se destaca agora o seu n.º 1 que determina inequivocamente que “os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”.

Em suma, e se, tal como o convite de aperfeiçoamento o demonstra, para um juízo do Tribunal Constitucional deve partir-se sempre da identificação das normas cuja constitucionalidade se contesta, é também facto que a análise do quadro constitucional deve partir do direito fundamental que tem, por lei, a respectiva titularidade restringida.

Esse direito é o direito de contrair casamento em condições de plena igualdade, previsto no n.º 1 do artigo 36.º da Constituição.

Aliás, é um facto que esse direito está sistemática e materialmente inserida na categoria dos “direitos, liberdades e garantias” e, por isso, é beneficiário do respectivo regime agravado de protecção.

Com efeito, trata-se de um direito das pessoas e não de uma qualquer prestação atribuída a uma instituição, como a família, que, noutra sede é, enquanto tal, beneficiária de prestações estaduais.

Por outras palavras, se sabemos que a lei reserva este direito para pessoas de sexo diferente, esse saber não pode orientar o percurso da análise do enquadramento jurídico da questão; isto é, a Lei Fundamental deve ser lida sem o óculo do direito vigente, sob pena de se inverter a hierarquia das fontes de direito. Interessa determinar o que, à data, independentemente do que prescreva o direito ordinário, a Constituição impõe e, daí, retirar as devidas consequências.

Depois, o n.º 2 do preceito citado remete para a lei a regulação dos requisitos e os efeitos do casamento e da sua dissolução, por morte ou divórcio, independentemente da forma de celebração. Está aqui, para muitos, a autorização constitucional dada ao legislador quanto à questão de consagrar, ou não, a possibilidade de celebração de casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Onde se lê que a lei regula requisitos e efeitos, nessa óptica, deve ler-se que a lei decide, desde logo, se duas pessoas do mesmo sexo podem casar, o que será, portanto, imagina-se, domínio de requisito. Mais, para alguns, a Constituição recebe o conceito histórico de casamento entre pessoas de sexo diferente.

Mas, e salvo o devido respeito, a Constituição não recebe qualquer conceito de casamento!

De facto, defender o contrário é ler a Constituição a partir do direito civil em vez de se inverter a ordem do exercício, em obediência à supremacia normativa da Constituição. Porque o direito de contrair casamento é, em primeiro lugar, uma expressão normativa do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º da Constituição.

E já vimos que é inequívoco que este é um direito das pessoas como direito, liberdade e garantia, até por que a Constituição e a realidade social não são mundos separados.

Ou seja, os direitos fundamentais, enquanto expressão da dignidade da pessoa humana, garantem ao indivíduo um espaço de não intervenção alheia, querendo aqui chamar-se a esse espaço uma «moral colectiva maioritária», ditada ou votada, decidida ou eleita, que lhe não permitisse esse acontecimento único que é ser-se, em liberdade, o que se é.

Por isso mesmo, contra direitos fundamentais não valem, sem mais, maiorias, sob pena de se funcionalizarem os primeiros!

Assim, se a Constituição optou por consagrar uma das vias de realização de um plano pessoal de vida através do direito fundamental ao casamento, é óbvio que, a essa luz, o legislador ordinário não pode excluir, quanto ao casamento, uma parte significativa da população!

Por outras palavras, a partir do texto constitucional pode hoje dizer-se que a dignidade da pessoa humana (quer em sentido estático, quer em sentido dinâmico) aponta para o livre desenvolvimento da personalidade.

Ora, perante um quadro constitucional que, consagrando o direito fundamental de todos de contrair casamento, reflectiu positivamente, em dialéctica com a sociedade, a necessidade de se proteger grupos de pessoas silenciados pelas suas legítimas formas de vida, alterando os critérios históricos de proibição de discriminações para neles incluir a orientação sexual e consagrando o direito ao livre desenvolvimento da personalidade é forçoso que se releia o artigo 36.º da Constituição.

A lei continuará a poder definir como queira os requisitos do casamento? Naquele quadro descrito? A titularidade, do ponto de vista da orientação sexual, é requisito?

Abstraindo da lei vigente, a Constituição confere a todos o direito de contrair casamento.

A Lei Fundamental evoluiu no sentido específico de protecção dos direitos que possam ser afectados por força da orientação sexual do titular.

Fê-lo no artigo 13.º e no artigo 26.º. A dignidade da pessoa humana concretiza-se num imperativo de igual tratamento das pessoas, estando expressamente proibida a discriminação com base na orientação sexual, e finalmente temos o direito de todos de contrair casamento, num sentido de universalidade.

Então, quais as razões fortes, excepcionais, constitucionalmente fundadas, para o legislador, perante um grupo significativo da sociedade que não beneficia de protecção equivalente, impedir o casamento a pessoas de sexo diferente?

De facto, nenhumas!!!

Finalmente, diga-se ainda que o legislador está obrigado a perseguir o comando constitucional da igualdade.

E deve fazê-lo com respeito pelo princípio da proporcionalidade.

Enquanto se não permite aos casais homossexuais acederem ao casamento, o legislador está em manifesta inconstitucionalidade por deixar a descoberto, sem fundamentação para tanto, uma categoria de pessoas. Se o legislador não confere o direito de contrair casamento aos homossexuais e, de forma avulsa, consagra algumas garantias que “compensem” aquela exclusão, nesse caso viola o princípio da adequação, já que ao criar, sem fundamentação plausível, uma categoria à parte da do casamento para os homossexuais está a prosseguir da pior forma o objectivo e comando constitucional da igualdade, por, na solução encontrada, mais uma vez traçar uma discriminação.

A forma mais adequada de promover a igualdade entre casais homossexuais e heterossexuais é, precisamente, enquadrá-los no mesmo instituto!

Mas, não obstante ainda tudo o que acima se disse, e bem cientes de que correrão o risco de se alongarem demasiado, e desnecessariamente, nesta peça processual que não é mais do que uma resposta a um convite a um aperfeiçoamento certo e bem determinado,

Ainda assim, e para não correrem o risco de não responderem de forma cabal ou de não corresponderem por inteiro e inequivocamente ao convite de aperfeiçoamento formulado e à intenção que lhe está subjacente, e para que fique inequívoco que, pelo menos agora, deixaram, sem margem para dúvidas, suficientemente indicado “o exacto sentido das normas cuja conformidade constitucional pretenderam questionar” não deixando, ainda assim, de identificar “de forma precisa e concreta os preceitos legais em que se inscrevem”, dirão ainda as Recorrentes o seguinte:

A lei e as entidades legalmente habilitadas não criam apenas direitos, deveres e poderes; conferem ainda outras qualidades, a que podemos chamar “simbólicas”.

Trata-se de figuras que, para lá de direitos e deveres que possam ter associados, valem pelo seu reconhecimento social e pelas reacções sociais positivas, negativas ou de mera identificação que tipicamente desencadeiam. O Estado tem o poder, por vezes exclusivo, de atribuir estes “bens simbólicos”.

O casamento civil, que só vale nos termos reconhecidos pela lei e pela Constituição, atribui um estatuto simbólico que ultrapassa em muito os deveres jurídicos indicados expressamente no Código Civil e noutros diplomas.

O estatuto simbólico do casamento identifica-se através de uma linguagem própria, que inclui os termos que designam o acto ou a relação (“casamento”, “matrimónio”, etc.), os que qualificam as pessoas em função disso (“casado”, “solteiro”, “viúvo”, “divorciado”, “marido”, “mulher”, “cunhado”, “sogro”, “primeira dama”, etc.), a aplicabilidade aos casados de termos mais amplos com forte valor cultural (“família”, “afinidade”) e as formas negativas ou meramente «técnicas» próprias de relações exteriores ou contrárias ao casamento (“união de facto”, “adultério”, “bigamia”, “amante”, “concubino”, “mancebia”, etc.).

A linguagem positiva própria do casamento participa de actos de reconhecimento interpessoal.

Mas, o que é muito mais importante, esse estatuto simbólico e a sua linguagem própria estão intrinsecamente associados tanto na cultura popular, quanto na cultura erudita — a realidades sociais, psicológicas e afectivas de enorme relevância: o amor, o compromisso, a família e a constituição de família, a publicidade e oficialização, a coabitação e a economia comum são os mais notórios.

Sublinhe-se a importância do amor e a sua relação com o casamento na cultura dominante, visível não só em clichés como “casaram e viveram felizes para sempre” ou “casaram por amor” (por oposição a “casaram por conveniência”), mas também pela relação entre a duração possível do casamento (até à morte de um dos cônjuges) e o valor positivo atribuído ao “amor eterno”.

Sublinhe-se igualmente a importância da legitimação social conferida pelo casamento ao amor erótico.

O estatuto simbólico do casamento está ainda associado à sua liberdade de celebração, embora dependente da presença de certos oficiais.

A essencialidade da liberdade dos nubentes para o casamento é reconhecida em muitos passos legais — desde logo pela sua qualificação como contrato.

Esta associação simbólica atribuída pelo Estado, com a sua linguagem própria, é um “bem jurídico”. E tanto assim é que, dadas as características desta instituição — como de outras uma figura com os mesmos efeitos jurídicos do casamento e com forma de constituição e extinção idênticas, mas com nome diferente, por exemplo, seria uma figura jurídica distinta, atribuiria um bem jurídico diverso.

Se a lei concedesse aos casais de pessoas do mesmo sexo o acesso a tal figura jurídica, mas não ao casamento, ainda estaria a negar a esses casais um bem jurídico de grande relevância.

Um casal de pessoas do mesmo sexo pode pretender a constituição da relação simbólica de casamento, num exercício de liberdade idêntico ao de um casal de pessoas de sexo diferente.

Um casal que queira casar pretende a sua inclusão formal no âmbito de aplicação da linguagem própria do casamento e pretende, com isso, o acesso às representações sociais típicas do casamento, a saber, as representações de amor, compromisso, família e constituição de família, publicidade, oficialização, coabitação e economia comum.

O estatuto social global correspondente a estas representações não pode ser obtido senão pelo casamento.

Não se consegue divisar qualquer motivo constitucionalmente atendível para negar a um casal de pessoas do mesmo sexo o acesso a este “bem jurídico”.

Não se imagina razão para privar os casais do mesmo sexo da linguagem positiva e das associações típicas do casamento. Não se vê justificação para recusar aos casais homossexuais este símbolo de grande relevância social.

Pelo contrário, a restrição do casamento a pessoas de sexo diferente, tal como decorre das normas do Código Civil, só é compreensível como discriminação explícita destinada a promover uma modalidade de exclusão.

Ou seja:

São, portanto, inconstitucionais as normas do Código Civil (que acima e de forma precisa se identificaram já) que impedem o casamento entre pessoas do mesmo sexo, por violação directa — e quase se diria intencional — do princípio da igualdade.

Esta é uma decorrência dos elementos nucleares do princípio da igualdade, só reforçada pela inclusão expressa da «orientação sexual» no art. 13.º da Constituição, que impõe um ónus argumentativo acrescido à tese contrária: – um ónus, diga-se, impossível de satisfazer!

 

II — Quanto ao recurso interposto ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro:

 

Como acima se referiu, e que em grande medida agora igualmente se aplica, também pretendem as Recorrentes reagir contra o facto de lhes ter sido recusada a aplicação de uma norma precisa e concreta.

De facto, e como acima se referiu, as Recorrentes têm sido postas perante sucessivas decisões, do Sr. Conservador do Registo Civil e, depois, do Tribunal de primeira instância e, finalmente, do Tribunal da Relação de Lisboa que a não puseram em causa, no sentido de que, segundo as próprias palavras do Sr. Conservador do Registo Civil,

“Não compete ao conservador do Registo Civil avaliar da constitucionalidade de normas, antes existe Tribunal próprio para o efeito”.

Ora, o que é verdade é que, de facto “compete ao conservador do Registo Civil avaliar da constitucionalidade de normas”!!!

E compete, porque assim o determina o artigo 18.º da Constituição na formulação que resulta dos três números que o compõem, mas de que se destaca agora o seu n.º 1 que determina inequivocamente que “os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”.

Assim, o que é verdade é que as Recorrentes viram ser-lhes recusada a aplicação da norma constitucional constante do n.º 1 do artigo 18.º da Constituição, o que foi feito, por incrível que isso pareça, porque quem recusou tal aplicação justificou essa atitude com a sua desconformidade com… o Código Civil!

O que, de facto, é absolutamente intolerável face à realidade tão clara e cristalina que é até já indiscutível e não carece aqui sequer de menção ou explicação especial, que é a hierarquia das normas que existe em qualquer Estado de Direito, no topo da qual está, como é óbvio, a Constituição.

E é da Constituição, isto é, do topo dessa hierarquia de normas que, para além das determinações constitucionais que acima se referiram e que, no lugar próprio se identificou onde elas resultaram violadas, que se encontram ainda claras e não menos inequívocas violações com que as Requerentes têm sido confrontadas.

Trata-se da manifesta violação do disposto no artigo 26.º da Constituição, que estabelece a garantia constitucional de “Outros Direitos Pessoais”, muito principalmente no que toca ao n.º 1 daquela disposição, que estabelece que “a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal… e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”.

Mas também a clara e manifesta violação do disposto no artigo 67.º da Constituição, que estabelece a garantia e a defesa constitucional da “Família”, muito principalmente no que toca ao n.º 1 daquela disposição, que estabelece que “a família, como elemento fundamental da sociedade tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal do seus membros”.

 

III — Quanto ao recurso interposto ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro:

 

Como acima se referiu, e que em grande medida agora igualmente se aplica, e por isso aqui se dá por integralmente reproduzido, só não se repetindo palavra por palavra por meras razões de economia processual, também pretendem as Recorrentes reagir contra o facto de serem repetida e permanentemente confrontadas com normas ilegais — que o são por ser manifesta a sua inconstitucionalidade — com que se pretendeu fundamentar as decisões recorridas e de que, desde sempre e logo no início da sua primeira reacção contra as mesmas, as Recorrentes identificaram em concreto e justificaram, indicando e clarificando inequivocamente de onde resultava essa mesma inconstitucionalidade.

De facto, e como acima se referiu, as Recorrentes têm sido postas perante sucessivas decisões, do Sr. Conservador do Registo Civil e, depois, do Tribunal de primeira instância e, finalmente, do Tribunal da Relação de Lisboa que são manifestamente inconstitucionais.

E desde a primeira hora foi com base nessa mesma inconstitucionalidade que as Recorrentes reagiram.

Com efeito, tendo o seu recurso subido, em primeira instância, para o Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, desde logo e imediatamente as Recorrentes o fundamentaram precisamente na inconstitucionalidade material das supra citadas normas do Código Civil (e das demais normas que lhe dessem correspondência — cfr. arts. 33.º e segs. das alegações).

E até, diga-se de passagem, e ao mesmo tempo, com o fundamento na manifesta inconstitucionalidade de qualquer decisão (jurisdicional ou administrativa) que, também por omissão, não tomasse em concreto e na prática consequente e que não correspondesse à inequívoca vontade do legislador constitucional de 2004 de não permitir qualquer forma de discriminação, qualquer que ela fosse (cfr. arts. 91.º e segs. das alegações de recurso) e que, por isso mesmo, decidiu na Lei Constitucional n.º 1/2004 completar a formulação do «Princípio da Igualdade» acrescentando ao artigo 13.º da Constituição a expressão “ou orientação sexual”.

Depois, também no Tribunal da Relação de Lisboa, as Recorrentes fundamentaram uma vez mais, e sempre, o seu recurso na inconstitucionalidade material das normas do Código Civil nas quais se baseava o indeferimento do processo de casamento das requerentes decidido pelo Sr. Conservador da 7.ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa.

Mas ainda, e uma vez mais e sempre também, com o fundamento na inconstitucionalidade que, também por omissão, resulta da desconformidade da persistência da aplicação daquelas normas com a inequívoca intenção do legislador constitucional que se deduz do aditamento da expressão “ou orientação sexual” à formulação original do artigo 13.º da Constituição.

Ou seja, esgotados todos os meios ou recursos jurisdicionais ordinários, que lhes possibilitassem (de acordo com a previsão do artigo 280.º da Constituição) reagir contra a decisão da aplicação das supra citadas normas do Código Civil e de cuja inconstitucionalidade continuam inabalavelmente persuadidas, quer não só do ponto de vista material, mas também da que resulta da desconformidade com a intenção do legislador constitucional de 2004, decidiram então as Recorrentes recorrer para este Tribunal Constitucional desde logo explicitando no seu requerimento de interposição desse mesmo recurso qual a fundamentação adjectiva da sua pretensão, identificando as normas ilegais aplicadas nas decisões recorridas e especificando o fundamento das ilegalidades invocadas.

Designadamente, a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 1577.º, da alínea e) do artigo 1628.º ambos do Código Civil (e também das normas que do todo coerente deste diploma legal lhes sejam directa ou indirectamente consequentes ou delas decorram), dada a manifesta violação do disposto no artigo 13.º da Constituição e do “Princípio da Igualdade” que ali é estabelecido, muito principalmente no que toca à expressão “ou orientação sexual” contida na parte final do n.º 2 daquela disposição constitucional.

Mas, também dada a manifesta violação do disposto no artigo 36.º da Constituição e do “Princípio da Liberdade de Constituir Família” e também do “Princípio da Liberdade de Contrair Casamento” que ali são estabelecidos, muito principalmente no que toca aos n.ºs 1 e 3 daquela disposição constitucional, dada a manifesta violação do disposto no artigo 16.º da Constituição, e do “Âmbito e Sentido dos Direitos Fundamentais” que ali é estabelecido, muito principalmente no que toca ao n.º 2 daquela disposição, dada a manifesta violação do disposto no artigo 18.º da Constituição, e da previsão da “Força Jurídica” que ali é preconizada para os preceitos constitucionais, muito principalmente no que toca ao n.º 1 daquela disposição, dada a manifesta violação do disposto no artigo 26.º da Constituição, que estabelece a garantia constitucional de “Outros Direitos Pessoais”, muito principalmente no que toca ao n.º 1 daquela disposição e, finalmente, dada a manifesta violação do disposto no artigo 67.º da Constituição, que estabelece a garantia e a defesa constitucional da “Família”, muito principalmente no que toca ao n.º 1 daquela disposição.

Na verdade, e como foi explicado, todas estas questões de inconstitucionalidade material constituem a base fundamental do inconformismo das recorrentes com a decisão do Sr. Conservador da 7.ª Conservatória do Registo Civil e, depois, com as decisões jurisdicionais que se lhe seguiram.

Por isso mesmo, foram desde logo suscitadas quer nas suas alegações do recurso interposto para o Tribunal de 1.ª instância (cfr. arts. 33.º e segs. das alegações) quer nas suas alegações do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa (cfr. arts. 40.º e segs. das alegações)

 

 

            3. Prosseguindo o recurso os seus trâmites, as recorrentes juntaram aos autos diversos pareceres e apresentaram a sua alegação, concluindo:

 

« – A Constituição da República Portuguesa distingue-se de algumas constituições estrangeiras por impedir explicitamente a desigualdade em função da orientação sexual e por consagrar, desde logo na sua letra, um direito fundamental ao casamento, sem distinções.

1.ª – Vem o presente recurso para este Tribunal Constitucional da decisão do Sr. Conservador da 7.ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa e das decisões jurisdicionais que se lhe seguiram, que não admitiram o processo de casamento que foi requerido pelas Recorrentes, com o fundamento de que as Recorrentes são do mesmo sexo, com base nas normas dos arts. 1577.º e 1628.º, al. e), do Código Civil.

2.ª- Inconformadas, as Recorrentes logo interpuseram recurso para o Tribunal Cível de Lisboa e, depois, para o Tribunal da Relação de Lisboa, sempre com base na manifesta e inequívoca inconstitucionalidade das normas em que tais decisões se sustentavam.

3.ª- É inequívoca a intenção não só programática, mas também de estabelecimento de um princípio fundamental do n.º 2 do artigo 13.º da Constituição, nomeadamente do aditamento da expressão “ou orientação sexual” feita pelo legislador de 2004, por ser insatisfatória a redacção original.

4.ª- Não é admissível que se argumente que o legislador constitucional tomou decisões “redundantes” ou “inúteis”; teremos forçosamente de concluir que aquela expressão foi aditada para que da enumeração exemplificativa da norma resulte agora um especial destaque para vedar a discriminação dos cidadãos em razão de serem homossexuais!

5.ª- A definição do casamento de modo a exigir a heterossexualidade é apriorística, depende da noção de “núcleo essencial” do casamento não só em função de um modelo histórico legalmente desconforme, mas ainda desconsiderando o facto de que o nosso ordenamento jurídico é pleno e uno.

6.ª- O raciocínio de que a Constituição cometeria a regulação do casamento ao legislador sem o proibir necessariamente de proceder ao seu reconhecimento, ou à sua equiparação aos casamentos, este raciocínio enferma de uma inversão metodológica implícita da qual se deduz um “cheque em branco” ao legislador comum.

7.ª – Inversão que omite inclusive a necessidade de escrutínio prévio do art. 13.º n.º 2 da Constituição.

8.ª- O mesmo raciocínio esquece ainda que o casamento é um «elemento fundamental da orgânica social (art. 67.º n.º 1), definidor de um proeminente estado jurídico, com indubitáveis reflexos no estatuto pessoal.

9.ª- Ou seja, a solução correcta terá de ser encontrada num percurso metodológico inverso: aferir, primeiro, do conteúdo do instituto do casamento no Código Civil e discutir, depois, a sua conformação com a Lei Fundamental.

10.ª- O propósito de “constituir família” constante da redacção do art. 1577.º poderia sugerir uma finalidade procriativa do casamento, o que está longe de corresponder ao regime legalmente estabelecido.

11.ª- Se não existe na lei civil qualquer limite máximo de idade para casar, se nada obsta ao casamento de pessoas inférteis, se a infertilidade não é fundamento de divórcio, se o casamento pode ser celebrado com urgência dado o perigo de morte dos cônjuges, etc. – então, nenhuma razão justifica que seja vedado o casamento a pessoas do mesmo sexo, nem mesmo de acordo com a própria lei ordinária, como o é o Código Civil.

12.ª – Não é lícito considerar-se a “união de facto” nem como situação marginalizada pela ordem jurídica, nem como alternativa ao casamento.

13.ª- Até porque a modelação sexual, nas suas mais diversas formas, matizes e acepções, é livremente feita por cada casal, no contexto e na privacidade da sua comunhão de vida.

14.ª- O casamento é gerador de um estado jurídico complexo e determinante de um estatuto social diferenciado do que é suscitado pela união de facto, a qual é juridicamente eficaz, porém de forma limitada e subalterna face à sua estrutural precariedade.

15.ª- O acesso de um casal de duas pessoas do mesmo sexo apenas à união de facto, ao contrário dos casais heterossexuais, que optam livremente entre a união de facto e o casamento, envolve uma distinção que carece de fundamento constitucional.

16.ª- O casamento é um instrumento do exercício do direito à afirmação da identidade pessoal e ao desenvolvimento, livre e coerente, da personalidade, no respeito pela reserva de intimidade da vida privada (art. 26.º, n.º 1, CRP), direitos primacialmente salvaguardados num Estado de Direito Democrático (art. 2.º CRP), assente no primado da dignidade humana (arts. 2.º e 26.º n.º 1) e da liberdade (artigo 27.º da CRP).

17.ª- É falaciosa a ideia de que a exclusão dos casais do mesmo sexo do acesso ao casamento radicaria no princípio da igualdade, por não se tratar de modo igual o que igual não é.

18.ª- Também numa perspectiva das ciências antropológicas, o casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma consequência lógica da dinâmica das práticas do parentesco em sociedades e culturas como a nossa, decorrendo da aplicação – a identidades sociais diferentes – dos mesmos princípios aplicáveis ao casamento entre pessoas de sexo diferente.

19.ª- Ao contrário do que sucedia numa “economia do sexo e do género” o casamento entre pessoas do mesmo sexo é agora parte do fresco etnográfico da humanidade, sendo, portanto, um adquirido das ciências sociais.

20.ª- O reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo significa o fim de uma forma de desigualdade simultaneamente material e simbólica, muito mais clara até quando tal caminho se iniciou com o reconhecimento cultural e legal da conjugalidade homossexual, por exemplo nas uniões de facto.

21.ª- As normas constitucionais são uma “força geradora de direito privado” inequivocamente vinculativas, como determina o n.º 1 do art. 18.º CRP.

22.ª- A proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo não corresponde a nenhuma “filosofia de Estado” ou “sensibilidade moral e religiosa” admissíveis à luz da Constituição Portuguesa em vigor.

23.ª- São erradas, sem apoio constitucional e irrelevantes para a questão em apreço as afirmações de que seria “preferencialmente no seio do casamento que deveria ser feita a procriação” e de que “ao Estado incumbiria o objectivo de conservação da espécie”.

24.ª- Com a progressiva hegemonia (histórica) do conceito de Amor Romântico, o casamento passou a ter como razão primeira o sentimento, sem prejuízo do surgimento de outras variáveis e do estilhaçar do binómio casamento/filhos.

25.ª- O casamento de hoje é uma relação tentada entre duas pessoas, dois afectos, duas liberdades, dois projectos de vida, muitas vezes ensaiada previamente numa experiência de coabitação. E não a moldura, ainda que emocional, para dois aparelhos reprodutores.

26.ª- A imperatividade das normas do direito ordinário matrimonial é irrelevante para a apreciação da respectiva constitucionalidade.

27.ª- Não pode sequer retirar-se do direito ordinário a qualificação das uniões homossexuais, daí resultante mais de uma vez, como não sendo “famílias”. Proíbe-o a Constituição.

28.ª- Ainda que se admitisse que o artigo 13.º da Constituição estabelece uma proibição de discriminações sem impor simultaneamente «uma igualdade absoluta em todas as situações» (fora de uma formulação positiva, como mais adiante defenderemos), ainda assim continuaria a não ser lícita a consideração de que, logo um dos primeiros exemplos de uma dessas particulares situações de excepção, em que não seria exigível essa tal “igualdade absoluta”, acabasse por constituir precisamente uma das situações mais precisas e concretas explicitamente previstas e expressamente proibidas no próprio texto Constitucional, como é exactamente o caso da proibição da discriminação em função da “orientação sexual”.

29.ª- Também falha a tese de que seria igualmente da própria norma constante do artigo 36.º da Constituição que, logo no seu n.º 1, garante a todos os cidadãos o direito “de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade”, de que se deduziria uma proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo, porquanto o seu n.º 2 remete para a lei civil “a regulação dos requisitos e dos efeitos do casamento e da sua dissolução por morte ou divórcio, independentemente da forma da sua celebração”.

30.ª- O casamento entre pessoas do mesmo sexo não é uma nova “forma de celebração” ou um “novo tipo de casamento”, mas sim o casamento referido como objecto de protecção no art. 36.º, n.º 1, da Constituição.

31.ª- No comando que faz à lei civil, o art. 36.º, n.º 2, da Constituição não exime o legislador ordinário do respeito dos restantes comandos constitucionais, como o princípio da igualdade, o princípio da proporcionalidade ou o princípio do livre desenvolvimento da personalidade.

32.ª- Não há na Constituição nada que impeça expressa ou implicitamente “as uniões homossexuais” de serem incluídas no “programa normativo directo” constante do art. 36.º, n.º 1.

33.ª- Se assim não fosse, passaria a ser admissível defender-se outras formas de proibição de acesso à celebração de casamento a outros cidadãos, o que poderia conduzir perigosamente a uma revoltante tese de proibição de casamentos inter-raciais.

34.ª- Em Portugal, o Direito já acompanhou (ou mesmo antecedeu) a mudança de atitudes e mentalidades necessária ao reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo.

35.ª- Nenhum “interesse público atinente à organização da vida familiar” é invocável em defesa da proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo, nem se conhece nenhuma tentativa de identificar esse suposto “interesse público”.

36.ª- Nem é visível que “interesse público” seria suficiente para afastar o disposto nos arts. 13.º, 36.º, 2.º, 26.º, etc. da Constituição.

37.ª- É certo que a liberdade contratual pode ser limitada pelo legislador ordinário, mas é preciso que esses limites tenham fundamento constitucional.

38.ª- Os limites que, de facto, existem ao condicionamento à liberdade contratual com que as Recorrentes se têm vindo a deparar, não foram encontrados nas características de “imperatividade” ou de “inderrogabilidade” do Direito da Família, mas somente na sua diferença em relação à maioria dos cidadãos, a saber, na sua orientação sexual.

39.ª- O casamento é um contrato que tem um duplo efeito para aqueles que o celebram quando “pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida”, pois, para além das consequências patrimoniais, o casamento enquanto “fonte de relações jurídicas familiares” por imposição do artigo 1576.º do Código Civil, tem também consequências importantes de ordem não-patrimonial, correspondentes aos deveres conjugais (cfr. art. 1672.º do C. Civil).

40.ª- A lei não estabelece apenas direitos, deveres e poderes, antes confere também qualidades simbólicas que valem pelo seu reconhecimento social e pelas reacções sociais positivas, negativas ou de mera identificação que tipicamente desencadeiam.

41.ª- A linguagem positiva própria do casamento participa de actos de reconhecimento pessoal, a que não é estranho um estatuto simbólico associado à sua liberdade de celebração, que se revê na sua qualificação como um contrato.

42.ª- Esta associação simbólica atribuída pelo Estado ao casamento, é um bem jurídico posto ao alcance de todos os que pretendem a sua inclusão formal nas suas representações e expectativas sociais típicas. Não é possível considerar que as normas da lei ordinária reservam o casamento unicamente a casais heterossexuais sem violação dos arts 13.º, n.ºs 1 e 2, e 36.º, n.º 1, da Constituição.

43.ª- Não é lícito impedir que uma relação entre pessoas do mesmo sexo exista por si mesma e à vista de todos sob a alegação de se deve tratar como “desigual o que é desigual”, afirmação evidente de desigualdade que impõe a pergunta: desigual em quê?

44.ª- Numa perspectiva de “proporcionalidade”, o direito ao casamento é um direito, liberdade e garantia, não pode ser restringido ou suprimido, senão na medida necessária para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (cf. art. 18.º, n.º 3, CRP).

45.ª- A supressão de qualquer bem constitucionalmente relevante impõe que haja um fundamento racional mínimo sob pena de constituir violação do princípio do Estado de direito democrático, na sua vertente de princípio da proporcionalidade (cfr. art. 2.º CRP).

46.ª- A atribuição do casamento aos casais homossexuais não altera o valor simbólico nem os deveres e obrigações dos cônjuges heterossexuais; ao acederem-lhe, aqueles pretendem que eles sejam mantidos na íntegra.

47.ª- A proibição do casamento homossexual viola ainda o princípio da igualdade enquanto proclamação da idêntica «validade cívica» de todos os cidadãos e de imposição de regras de estatuto social dos cidadãos e de princípios de conformação social e de qualificação da posição de cada cidadão na colectividade. Enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, tal princípio deixa ilegitimadas quaisquer diferenciações de tratamento baseadas em categorias meramente subjectivas ou em razão dessas categorias, incluindo, pois a orientação sexual dos cidadãos (cfr. art. 13.º, n.º 2, CRP).

48.ª- O princípio da igualdade enquanto significante de uma “obrigação de diferenciação” como forma de compensar as desigualdades de oportunidades é admissível, mas unicamente quando essa diferenciação, ou discriminação, é feita num sentido ou numa formulação exclusivamente  positiva.

49.ª- O aditamento da expressão «ou orientação sexual» feito pela Lei Constitucional n.º 1/2004 ao texto original do n.º 2 do artigo 13.º da Constituição, obsta às discriminações directas ou indirectas baseadas neste critério, quando deu acolhimento a reivindicações no sentido do direito à identidade sexual e quanto à proibição da privação de direitos por motivo de homossexualidade.

50.ª- Da formulação normativa constante do n.º 1 do artigo 36.º da Constituição resulta a inadmissibilidade da redução do conceito de família à união conjugal baseada no casamento, isto é, à família “matrimonializada”; naquela norma estão abrangidos, pois, todos os conceitos de família, isto é, “todas comunidades constitucionalmente protegidas”, como as famílias monoparentais, as comunidades de filhos nascidos fora do casamento, as famílias formadas por irmãos ou irmãs, as uniões de facto e as uniões homossexuais.

51.ª- Do mesmo normativo constitucional do artigo 36.º resulta ainda o reconhecimento inequívoco do direito a todos os cidadãos a constituírem família em condições de plena igualdade e do direito a todos os cidadãos a contraírem casamento em condições de igualdade

52.ª- Esses dois direitos são distintos, estão formulados separadamente e não se confundem um com o outro.

53.ª- Não é constitucionalmente admissível a consideração de que a concessão a um determinado conjunto de cidadãos do direito a contraírem casamento em condições de plena igualdade, aliás em obediência ao comando constitucional do art. 36.º, n.º 1, significaria que o casamento resultaria suprimido ou desfigurado no seu núcleo essencial.

54.ª- Não é constitucionalmente lícito vedar o acesso ao casamento em condições de plena igualdade a um determinado grupo de cidadãos após terem sido previamente identificados e, por força de peculiares circunstâncias, distinguidos dos seus demais concidadãos, quando essa discriminação é feita em razão da sua orientação sexual, constitucionalmente proibida no n.º 2 do art. 13.º.

55.ª- Não é constitucionalmente lícito impedir o acesso ao casamento em condições de plena igualdade a um determinado grupo de cidadãos quando, após uma ponderação valorativa de normas em confronto, se opta pela caracterização meramente definidora da lei civil, em detrimento das formulações constitucionais de princípios fundamentais que as contradizem.

56.ª- O acesso dos cidadãos homossexuais ao direito constitucional de contraírem casamento em condições de plena igualdade, a exemplo do que sucedeu já nos países que nos estão próximos, é uma inevitabilidade histórica decorrente de uma normal evolução civilizacional, societária, cultural e democrática, e que se verificará mais cedo ou mais tarde, mas pela qual as Recorrentes, na vivência concreta do seu projecto de comunhão de vida e também de consolidação jurídica – e até mesmo social e económica – da família que constituem, esperam e anseiam lhes seja concedido por decisão, já nestes próprios autos, deste Tribunal Constitucional.

57.ª- O reconhecimento da licitude constitucional do casamento entre cidadãos do mesmo sexo significará para estes um concreto enriquecimento da sua esfera jurídica, em contrapartida do qual nenhum prejuízo ocorrerá para quem quer que seja, e nenhumas consequências advirão para os casais heterossexuais, para quem aquele direito, que lhes é já reconhecido, resultará incólume.

58.ª- A ideia de que o casamento homossexual viria «suprimir» ou «desfigurar» o núcleo essencial do casamento não se desprende de uma tutela de sentimentos gerais de moralidade sexual e revela um juízo de desvalor da homossexualidade, incluindo a ideia de que a heterossexualidade representa a situação mais “normal”, havendo algo de “anormal” na homossexualidade.

59.ª- Tal como sucedia com o anterior art. 175.º do Código Penal.

60.ª- Ora, os parâmetros de normalidade/anormalidade, extraídos, aparentemente, de uma observação “estatística” da sociedade, são imprestáveis para justificar uma diferença de tratamento jurídico, face aos artigos 13.º, n.º 2, e 26.º, n.º 1, da Constituição.

61.ª- Independentemente da inconstitucionalidade, que já se deixou defendida, mas ainda que somente de um ponto de vista exclusivamente civilizacional, não existem já hoje razões para que a formulação do artigo 1577.º do Código Civil contenha a expressão «de sexo diferente» e a da alínea e) do artigo 1628.º continue a estatuir a inexistência jurídica dos casamentos celebrados entre duas pessoas do mesmo sexo e que, assim, as impede de – e na própria formulação da lei – o exercício do direito de  «constituir família mediante uma plena comunhão de vida».

62.ª- As normas que impedem o casamento entre pessoas do mesmo sexo não têm fundamento ou justificação material algum.

63.ª- Viola a regra constitucional da igualdade o preceito que dê relevância a um dos títulos constantes do art. 13.º, n.º 2, CRP para, em função dele, beneficiar ou prejudicar um grupo de cidadãos perante os restantes.

64.ª- «Os direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade (cf. art. 26.°, n.º 1, in fine, CRP), postulados pelo respeito da dignidade da pessoa humana, traduzem-se no direito dos cidadãos à sua auto-realização como pessoas, onde se compreende o direito à autodeterminação sexual, nomeadamente enquanto direito a uma actividade sexual orientada segundo as opções de cada um dos seus titulares, o que é prejudicado pela proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo.

65.ª- É precisamente no tratamento de situações que se inserem em categorias socialmente minoritárias ou sociologicamente desfavorecidas que o princípio constitucional da igualdade cobra a sua principal força, tutelando, sempre ou de algum modo, um direito “à diferença” ou “de diferença”.

66.ª- Neste sentido, o princípio da igualdade não comanda que se trate de forma diferente o que «é diferente», mas sim, justamente, que se trate de forma igual o que “é diferente”.

67.ª- Quanto a estas “diferenças”, só uma discriminação positiva não violaria o princípio da igualdade; qualquer restante distinção legal é inconstitucional.

68.ª- A reserva do casamento para casais de sexo diferente justificava-se no quadro da ideia normativa de “complementaridade” entre os cônjuges, no âmbito de uma “sociedade diferenciada”, que veio a ser afastada pela Constituição de 1976 (cf. art. 36.º, n.º 3).

69.ª- Excluídas as regras e os princípios de “complementaridade” entre os cônjuges, a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo fica destituída de fundamento constitucional.

70.ª- Existem muito mais diferenças entre as faces da instituição casamento separadas pelos últimos cento e vinte anos, do que entre os cidadãos heterossexuais, homossexuais e bissexuais.

71.ª- O n.º 2 do artigo 13.° da Constituição da República Portuguesa enumera uma série de factores que não justificam tratamento discriminatório e assim actuam como que presuntivamente – presunção de diferenciação normativa envolvendo violação do princípio da igualdade.

72.ª- O referencial que há-de servir para a comparação das situações fácticas e jurídicas em confronto, para aferir da sua igualdade juridicamente relevante, nunca poderá traduzir-se em qualquer um dos factores enumerados no artigo 13.°, n.º 2, da Constituição Portuguesa.

73.ª- Há que especialmente evidenciar, no art. 13.º, o repúdio de diferenças baseadas em critérios de valor meramente subjectivos e a identificação da proibição do arbítrio com discriminações não devidamente justificadas nas especialidades fácticas de imediato significado valorativo compatível com os valores constitucionais.

74.ª- Em Portugal, os cidadãos homossexuais continuam a ser apontados a dedo, humilhados, insultados e ainda tão frequentemente discriminados, sendo este fenómeno homofóbico inaceitável à luz da Constituição.

75.ª- A negação do casamento a casais de pessoas do mesmo sexo nega-lhes a possibilidade de assegurarem mutuamente direitos sucessórios, de pensões de sobrevivência, de comunhão patrimonial, de valoração jurídica aos compromissos morais consubstanciados nos deveres conjugais, etc., etc.

76.ª- Há também benefícios intangíveis, de um ponto de vista jurídico, tão ou mais relevantes do que aqueles outros e que são negados aos casais de pessoas do mesmo sexo pelas normas do Código Civil.

77.ª- As normas expressas pelos artigos 1577.º e 1628.º, alínea e), do Código Civil falham o teste da compatibilidade com princípios como os da garantia do desenvolvimento da personalidade e da reserva da intimidade da vida privada (art. 26.º da Constituição), ou mesmo, pressupostos certos modelos de reconstrução dogmática do regime jurídico do casamento, o da garantia da liberdade de religião (art. 41.º da Constituição).

78.ª- Há consequências prejudiciais da subtracção das crianças filhas de um membro de um casal homossexual à protecção a que, por força também do artigo 67.º da Constituição, deveriam ter direito.

79.ª- A recusa de casamentos entre pessoas que não sejam de “sexo diferente”, uma vez que não cumpra (como não cumpre) um papel de concretização de algum interesse público fundamental (como o da protecção da família), tem de ser vista como expressão de alguma “concepção moral abrangente” que não cabe à Constituição proteger.

80.ª- No que respeita ao casamento, isso impõe a preservação da neutralidade do regime jurídico da lei civil perante concepções acerca de supostas “naturezas” do instituto.

81.ª- Uma definição propriamente jurídica do casamento, como é evidente, é compatível com qualquer extensão da «noção» de casamento que preserve a conformidade com os princípios da Constituição.

82.ª- O direito a contrair casamento é um direito das pessoas enquanto pessoas, e a sua concessão tem de ser — por força do comando constitucional de igualdade — independente de considerações acerca do facto de os cônjuges serem, ou não, de sexo diferente.

83.ª- A discriminação resultante das normas do Código Civil em observação opera não só em razão da orientação sexual, mas também do sexo: o género (masculino ou feminino) do cônjuge é condição necessária da discriminação, o que não sucede com a orientação sexual.

84.ª- O alcance da inconstitucionalidade das normas expressas pelos artigos 1577.º e 1628.º, alínea e), do Código Civil por violação do princípio de igualdade pode ser ainda mais aprofundado se se prestar alguma atenção aos casos das pessoas transexuais.

85.ª- Quer quando a identidade sexual destas pessoas não é reconhecida juridicamente, permitindo-lhes assim, apenas, casar com pessoas do mesmo género.

86.ª- Quer quando essa identidade é reconhecida e conduz à “inexistência superveniente” do casamento que já têm.

87.ª- O sexo ou o género não são constitutivos do conceito juridicamente relevante de pessoa, e o direito a contrair casamento configura-se constitucionalmente como um direito das pessoas.

88.ª- A discriminação decorrente da lei civil, violando o princípio de igualdade, viola também, por conseguinte, o princípio de respeito pela dignidade da pessoa humana e o art. 1.º da Constituição.

89.ª- O preconceito anti-homossexual exprime uma sexualização (ou uma genitalização, no vocabulário dos gender studies) da comunhão de vida entre pessoas do mesmo sexo.

90.ª- Essa genitalização não é aceitável para a compreensão constitucional da comunhão de vida a que se refere o instituto do casamento.

91.ª- As disposições dos artigos 1577.º e 1628.º, alínea e), do Código Civil exprimem juízos de inferioridade moral sobre o amor homossexual e sobre a qualidade das famílias constituídas por duas pessoas do mesmo sexo.

92.ª- Vedando o acesso ao casamento a pessoas que não sejam de “sexo diferente”, infringem o direito fundamental a contrair casamento também na sua dimensão de direito de uma pessoa a escolher com quem quer casar.

93.ª- O casamento entre pessoas do mesmo sexo não retira quaisquer direitos, bens ou garantias a quaisquer outros cidadãos.

94.ª- A atribuição do casamento a pessoas do mesmo sexo não desfigura nem diminui a instituição do casamento nem o seu “núcleo essencial”. Pelo contrário, preserva toda a sua natureza tangível e intangível.

95.ª- Tal como preserva a natureza da instituição da família, inclusive enquanto elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à protecção desta e do Estado, nos termos da Constituição e da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

96.ª- A diversidade de sexo dos membros do casal é evidentemente alheia à prossecução do interesse público no reconhecimento do desejo de duas pessoas mutuamente assumirem um compromisso de amor, afecto, cuidado mútuo, e companheirismo.

97.ª- O artigo 36.º da Constituição especifica o artigo 13.º e proscreve quaisquer tentativas de associar o conceito de família, relevante para o artigo 67.º, a algum subconjunto dos cidadãos portugueses.

98.ª- Os casais de pessoas do mesmo sexo são famílias. Negar-lhes o casamento nega que as suas famílias tenham de pleno o estatuto de elementos fundamentais da sociedade.

99.ª- A tese da “garantia de instituto” é infundada por causar um círculo vicioso normativo, o privilégio arbitrário de um instituto, o privilégio arbitrário do passado, o conservadorismo alheio à Constituição, a desconsideração das posições subjectivas e a desconsideração dos fins últimos dos institutos, além de conduzir a uma vacuidade argumentativa.

100.ª- O círculo vicioso resulta de, de acordo com a tese impugnada, a Constituição receber um conjunto de regras ordinárias cuja validade deve ser aferida à luz da própria Constituição.

101.ª- A garantia de instituto, ao apoiar-se na tradição, na história desse instituto, conduz à protecção de um sistema passado com a única justificação de ser passado.

102.ª- A garantia de instituto vem preservar uma ordem económica e social pretérita em relação à qual a Constituição pode ser neutra ou mesmo adversa.

103.ª- A garantia de instituto, ao garantir o instituto objectivo, desconsidera as posições subjectivas que a letra e o sentido das disposições constituições em causa visam proteger.

104.ª- A garantia de instituto promove imobilismos sociais quer de privilégios de minorias, quer, no caso do casamento, de discriminação de minorias, vedando-lhes o acesso a um bem.

105.ª- A tese da garantia de instituto falha também por conduzir à omissão dos argumentos constitucionalmente relevantes para certa solução.

106.ª- O uso da palavra «casamento» no art. 36.º da Constituição incorpora nesta o conceito de casamento, mas não inclui nenhuma das concepções que esse conceito admite.

107.ª- O conceito de casamento admite várias concepções e, entre estas, a sua admissibilidade é verificada à luz dos valores e princípios constitucionais.

108.ª- Dada a diferença entre conceitos e concepções, não há nenhum argumento ex definitione contra o casamento homossexual.

109.ª- Pelo contrário, o conceito de casamento inclui naturalmente o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Caso contrário, a discussão jurídica e política a este respeito, e o presente caso, seriam ininteligíveis.

110.ª- O casamento não tem, na lei, outra função que não seja a de pôr à disposição dos cônjuges um qualificativo de auto-identificação que traz associadas várias representações positivas, acrescido da atribuição por atacado de um conjunto de efeitos jurídicos comuns, a maior parte deles com uma natureza de «garantia» para os casos de cessação da vida em comum.

111.ª- O casamento não tem, designadamente, uma “função procriativa”, como se vê de numerosos aspectos legais:

112.ª- Os sub efeitos jurídicos do casamento, sejam eles sucessórios, de segurança social, no direito do arrendamento ou outros, não ficam prejudicados pela inexistência de filhos, mesmo que intencional;

113.ª- A Constituição de 1976 veda a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos;

114.ª- A esterilidade de um ou ambos os cônjuges, ou mesmo de um cônjuge com o outro, não é impedimento matrimonial, dirimente ou impediente, nem mesmo quando declarada ou do conhecimento público;

115.ª- Não é motivo de anulação o erro quanto à esterilidade do outro cônjuge que seja indesculpável ou presumivelmente irrelevante para a formação da vontade de casar;

116.ª- A esterilidade superveniente não é fundamento de divórcio litigioso;

117.ª- A impotência sexual e as incompatibilidades por razões eugénicas são tão irrelevantes como as esterilidades;

118.ª- O uso de contraceptivos contra a vontade do cônjuge, por si, também não fundamenta o divórcio litigioso;

119.ª- O acordo entre os nubentes no sentido de não ter filhos não vale como pactum simulationis;

120.ª- Não há idade limite para casar;

121.ª- Reconhecem-se os casamentos urgentes por perigo de morte e in articulo mortis.

122.ª- Por outro lado, os casais homossexuais têm, muitas vezes, filhos:

123.ª- A maioria das lésbicas e muitos homens homossexuais têm filhos biológicos. O facto de estes filhos terem sido gerados numa relação heterossexual, num acto heterossexual isolado, numa fertilização in vitro ou serem adoptivos em nada releva para a sua dignidade de protecção.

124.ª- A ideia de uma função do casamento teria de ser um elemento operativo para a interpretação das leis e a boa decisão dos casos problemáticos que surjam à sua luz, revelando-se, de alguma maneira, nas próprias leis ordinárias ou noutros lugares do sistema.

125.ª- O Direito Fundamental de Contrair Casamento é expressão do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e está sistemática e materialmente inserido na categoria dos direitos, liberdades e garantias, sendo, por isso mesmo, beneficiário do respectivo regime agravado de protecção.

126.ª- Trata-se de um direito das pessoas e não de uma qualquer prestação atribuída a uma instituição, como a família, que, noutra sede é, enquanto tal, beneficiária de prestações estaduais.

127.ª- A Lei Fundamental não pode ser lida à luz do direito ordinário vigente, sob pena de se inverter a hierarquia das fontes de direito.

128.ª- O art. 36.º, n.º 2, da Constituição não é uma autorização constitucional dada ao legislador quanto à questão de consagrar, ou não, a possibilidade de celebração de casamentos entre pessoas do mesmo sexo.

129.ª- A Lei Fundamental não recebe um “conceito” de casamento no sentido de que se deveria ler a Constituição a partir do direito civil, em vez de se inverter a ordem do exercício, em obediência à supremacia normativa da Constituição.

130.ª- Os direitos fundamentais têm uma vocação contramaioritária.

131.ª- Numa ordem constitucional, quando um direito expressa claramente uma liberdade ou uma competência que inscrevem o titular num universo de seres livres e iguais em dignidade, só por razões muito ponderosas, excepcionais e com claro apoio na Constituição pode o legislador afastar uma categoria de pessoas daquele direito.

132.ª- As liberdades e competências, fortemente ligadas à dignidade das pessoas, não têm de esperar pelo consenso social para terem plena efectividade.

133.ª- Onde se não encontrar um outro direito, interesse ou valor constitucionalmente fundado que justifique o sacrifício do direito, uma mera concepção social dominante não permite a sua restrição.

134.ª- O que resulta directamente do art. 18.º, n.º 2, da Constituição.

135.ª- O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana impõe a autonomia ética do indivíduo, com a consequência de que na sua assunção como sujeito, é ao indivíduo que cabe, primacialmente, a configuração e densificação do conteúdo preciso da sua dignidade.

136.ª- Os direitos fundamentais assim concebidos são particularmente úteis a indivíduos e grupos que não se inserem em concepções ou modos de vida conjunturalmente apoiadas por maiorias políticas, sociais ou religiosas.

137.ª- O direito ao livre desenvolvimento da personalidade, constante do art. 26.º da Constituição, reforça todos os direitos pessoais activos, inclusive o direito à autonomia de orientação sexual, limitando ainda a intervenção do Estado e da sociedade na esfera individual.

138.ª- O direito ao livre desenvolvimento da personalidade é um novo direito, e não um princípio jusfundamental.

139.ª- O direito pessoal de contrair casamento, no plano constitucional, tem, do ponto de vista da excepcionalidade da negação da universalidade (artigo 12.º da CRP), uma reinterpretação obrigatória à luz de um direito que comanda a  inclusão constitucional dos planos de vida pessoais mais fragilizados pelas concepções dominantes contrárias.

140.ª- A revisão constitucional de 1997 teve sobretudo em vista a tutela da individualidade, e em particular das suas diferenças e autonomia.

141.ª- Ao Estado (e ao Direito) cabe, por um lado, não interferir na esfera de autonomia de cada um, nomeadamente abstendo-se de emitir comandos, penalizadores de comportamentos, baseados em determinações morais e, por outro lado, identificar fenómenos sociais e institucionais como relevantes e merecedores de enquadramento jurídico, como é o caso das famílias homossexuais.

142.ª- O debate público em torno da alteração ao art. 13.º, n.º 2, da Constituição mostrou bem como a mesma foi mais do que uma especificação.

143.ª- Os próprios opositores da alteração alertaram expressamente para o estatuto de igualdade que a nova formulação constitucional conferia aos homossexuais, com projecção, nomeadamente, em matérias historicamente reservadas aos heterossexuais.

144.ª- Não se tornam atendíveis, nem sequer mesmo compreensíveis, os argumentos de um legislador que, impávido e sereno perante um grupo significativo da sociedade portuguesa, persiste em impedir-lhes o acesso ao casamento.

145.ª- E, mesmo perante a protecção da Uniões de facto saída da Lei n.º 7/2001 de 11 de Maio, persistiria óbvia a violação do princípio da igualdade na atribuição do direito de contrair casamento exclusivamente a pessoas de sexo diferente.

146.ª- Se alguma protecção jurídica existe, certo é que duas pessoas de sexo diferente têm dois regimes jurídicos à sua disposição – o da união de facto e o do casamento –, enquanto que duas pessoas do mesmo sexo que pretendam fazer uma vida comum só contam com o que do ponto de vista legal, na sua situação de facto, seja relevante.

147.ª- A protecção jurídica decorrente da união de facto é claramente deficitária, se comparada com a resultante do casamento.

148.ª- O que foi reconhecido pelo Tribunal Constitucional, p. ex., a propósito do direito à pensão de sobrevivência no caso da união de facto.

149.ª- Aliás, como reverso da inexistência de um vínculo jurídico, com direitos e deveres e um processo especial de dissolução, entre as pessoas em situação de união de facto.

150.ª- A maior protecção jurídica do casamento vir associada a um acto de vontade pelo qual as pessoas se vinculam a um contrato, facto ao qual o Direito não é indiferente.

151.ª- Na lei ordinária, porém, esta maior protecção só é reconhecida aos casais heterossexuais.

152.ª- A discriminação está tão enraizada que se começa por explicar que o regime legal de enquadramento das uniões de facto é independente do sexo das pessoas em causa para, depois, fundamentar a diferença da solução legal respeitante à pensão de alimentos na circunstância de as pessoas poderem escolher entre a união de facto e o casamento, o que só é concedido aos casais heterossexuais.

153.ª- O legislador está em manifesta inconstitucionalidade por deixar a descoberto, sem fundamentação para tanto, uma categoria de pessoas.

154.ª- O princípio da igualdade não tem mais uma natureza puramente negativa, como proibição de perturbações arbitrárias da igualdade jurídica, assumindo crescentemente uma dimensão positiva que se traduz na imposição de determinadas soluções legislativas.

155.ª- Da indiscutível separação constitucional entre os conceitos de família e de casamento resulta ainda uma nova e necessária consequência, que reside numa outra nova dissociação, quer civil quer Constitucional, agora entre casamento e procriação.

156.ª- O legislador ordinário não está em mera inconstitucionalidade por omissão, mas sim em inconstitucionalidade por acção, e só esta é objecto do presente recurso.

157.ª- Mesmo que por mera hipótese admitíssemos – o que já acima se deixou claro que não é o caso – que o legislador seria livre para criar um novo contrato análogo ao do casamento, para pessoas do mesmo sexo, o facto é que, à data, não existe esse regime jurídico.

158.ª- A haver alguma omissão, ela seria relativa, porque há uma actuação positiva do legislador, essa plasmada nas normas civilísticas aqui apreciadas.

159.ª- Quanto às omissões relativas, estas só num plano figurativo são genuínas omissões. Na verdade, são lacunas axiológicas onde o conteúdo incompleto de um regime legal positivo afronta a Constituição pelo facto de o silêncio parcial de algumas das suas normas gerar uma depreciação indevida de garantias, ou uma situação intoleravelmente discriminatória, à luz do princípio da igualdade.

160.ª- As normas que nos ocupam são normas de exclusão explícita de uma categoria de pessoas, o que, por maioria de razão, não pode, em circunstância alguma, deixar de ser enquadrado no tipo «inconstitucionalidade por acção».

161.ª- O casamento é um bem jurídico simbólico.

162.ª- O problema jurídico do casamento entre pessoas do mesmo sexo é o problema de um dado tipo de reconhecimento e de legitimação.

163.ª- A ideia de negar o casamento aos homossexuais visa sobretudo negar-lhes uma palavra, um qualificativo, impor-lhes uma distinção.

164.ª- O casamento é um bem jurídico simbólico pela vasta linguagem positiva que faculta e pelas reacções emocionais, práticas e epistémicas que justifica. O casamento é o análogo simbólico a uma comunhão de vida.

165.ª- A pretensão de que a Constituição determinaria a preservação da heterossexualidade dada a natureza institucional  do casamento (civil), «com a necessidade de criação de um regime jurídico a se para os “casamentos” homossexuais, omite inteiramente o significado normativo da evolução do instituto do casamento

166.ª- A diferenciação daí resultante é insusceptível de justificação à luz da generalidade dos efeitos jurídicos do casamento.

167.ª- Não se descortina fundamento possível para a recusa de uma eficácia jurídico-sucessória própria da sucessão legal à união estável de duas pessoas do mesmo sexo que partilhem as suas vidas, ou na recusa de um modelo jurídico aderente à realidade da vida em comum, tal como o que se refere a toda a classe de efeitos patrimoniais do casamento e aos regimes de bens, ou ainda, no reconhecimento de um dever de assistência característico das relações jurídico-familiares mais estreitas.

168.ª- O fundamento para esta diferente tutela jurídica das uniões homo e heterossexuais é geral e genericamente imputado ou à tradição, ou à natureza institucional do casamento, a que o artigo 1577.º do Código Civil daria expressão, em obediência ao disposto no artigo 36.º, n.º 1, da Constituição.

169.ª- Ter-se-ia de concluir  pela necessidade de criação de um novo instituto que permitisse estender às uniões homossexuais todos os efeitos jurídicos assinalados ao casamento que devessem considerar-se independentes da heterossexualidade da união.

170.ª- Mas sempre teria de ser demonstrado, a título de pressuposto necessário de uma tal solução dualista, que o instituto jurídico do casamento, enquanto contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir uma comunhão plena de vida corresponde àquilo que, de acordo com as representações culturais basilares, seria intrinsecamente característico de tal instituição.

171.ª- Mas a relação institucional assente no contrato definido no Código Civil refere-se a uniões entre indivíduos que, sendo sempre juridicamente cônjuges, podem, mas não são juridicamente obrigados, a viver sob o mesmo tecto, que podem ou não nutrir um profundo apego emocional um pelo outro, que podem ou não apreciar-se intensamente do ponto de vista sensual, que podem ou não estabelecer um com o outro uma conexão de intimidade psicológica essencial, que podem ou não procurar em conjunto a realização pessoal e as recompensas existenciais cuja protecção subjaz, pelo menos mediatamente, à garantia do artigo 36.º, n.º1 da Constituição.

172.ª- Passado em revista o conteúdo da relação jurídica estabelecida do contrato de casamento, verificamos que a ordem jurídica se limita, nesse particular aspecto, a proporcionar um conjunto de efeitos jurídicos.

173.ª- O significado social de supremo compromisso existencial entre duas pessoas não se encontra alojado no Direito.

174.ª- A ideia de contrato, assente na lei civil, surge-nos como um topos  argumentativo favorável à autonomia e à preponderância do indivíduo, por oposição a instituição, que é um topos da argumentação tendente à afirmação da supremacia dos interesses (valores) supra-individuais.

175.ª- O casamento civil, ao fazer ingressar o instituto no âmbito do sistema normativo do Estado, foi muito justamente visto então como um ataque desferido à instituição do casamento, com a simétrica elevação da sua natureza contratual.

176.ª- A pretensão de que a constituição do vínculo do casamento seria doravante questão regulada pelo Estado envolvia a apropriação de algo originalmente criado pelos canonistas e que, nessa medida, seria compreensivelmente sentido como pertença da Igreja.

177.ª- O transporte para um novo habitat normativo determinaria uma progressiva alteração – desconfiguração – da estrutura normativa do instituto.

178.ª- Com isto, atingiram‑se precocemente dois aspectos nucleares do instituto original: a dissolubilidade do vínculo e a irrelevância da impotentia cuendi.

179.ª- No fim da sua história, o casamento (civil) encontrou o seu fundamento e função unicamente no seio dos parâmetros jurídico-constitucionais positivos, não se descortinando nestes fundamento algum para a heterossexualidade do instituto.

180.ª- Os artefactos culturais como o casamento envolvem representações sobre o que é uma vida boa, aquela em que o indivíduo experimenta a possibilidade do seu florescimento identitário-social, aí residindo também a razão de ser da garantia constitucional do casamento, fundamentada na dimensão eudemonística da dignidade.

181.ª- A pretensão de que a Constituição determinaria a preservação da heterossexualidade omite inteiramente o significado normativo da evolução do instituto.

182.ª- Não há nenhum motivo racional para a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo, de modo que esta proibição viola o princípio da proporcionalidade contido na ideia de estado de direito democrático e no art. 2.º da Constituição.

183.ª- À partida, as distinções normativas relativas aos homossexuais resultam, empiricamente falando, do fenómeno social da homofobia, que é um enviesamento decisório.

184.ª- Dada a causa social esperável, mas constitucionalmente proscrita, da proibição do casamento homossexual, o ónus argumentativo cabe à tese da não inconstitucionalidade da proibição. Na falta de uma argumentação segura no sentido de uma ou outra decisão, cabe decidir pela inconstitucionalidade.

185.ª- O art. 13.º, n.º 2, CRP tem um efeito presuntivo, ao indicar os «casos flagrantes» ou «exemplos-padrão» de desigualdade ilícita.

186.ª- Dada a menção da orientação sexual no art. 13.º, n.º 2, CRP, presume-se a inconstitucionalidade de todas as distinções legais formal ou substancialmente dependentes da orientação sexual. Por uma segunda razão, o ónus argumentativo cabe à tese da não inconstitucionalidade da proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo.

187.ª- Dada a letra igualitária e permissiva do art. 36.º, n.º 1, CRP, há um terceiro fundamento jurídico para atribuir o ónus argumentativo à tese da não inconstitucionalidade do casamento homossexual.

188.ª- O surgimento do casamento homossexual é historicamente análogo à introdução do casamento civil. Em qualquer dos casos, a alteração dos pressupostos de facto do casamento não alterou o fenómeno jurídico e social.

189.ª- A proibição do casamento homossexual é um análogo perfeito da proibição do casamento entre pessoas de «raças» diferentes, quer nas suas circunstâncias sociais e históricas, quer nos argumentos irracionais usados, quer nos argumentos racionais disponíveis, quer nos efeitos jurídicos e de facto.

190.ª- A analogia absoluta entre a proibição do casamento inter-racial e a proibição do casamento homossexual justifica, só por si, a inconstitucionalidade da proibição do casamento homossexual.

191.ª- Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional.

192.ª- Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a “Declaração Universal dos Direitos do Homem”.

193.ª- A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à protecção desta e do Estado, designadamente através do casamento.

194.ª- A protecção da família inclui as famílias homossexuais.

195.ª- Se houvesse dúvidas quanto a alguns dos efeitos ou à falta de efeitos sociais do casamento entre pessoas do mesmo sexo, o juízo de inconstitucionalidade da proibição manter-se-ia, dados os ónus argumentativos impostos à tese da constitucionalidade.

196.ª- Se houvesse dúvidas quanto a alguns dos efeitos do casamento entre pessoas do mesmo sexo ou quanto à relevância dos princípios constitucionais invocados, o juízo de inconstitucionalidade da proibição manter-se-ia, dados os ónus argumentativos impostos à tese da constitucionalidade.

197.ª- As normas que proíbem o casamento entre pessoas do mesmo sexo violam:

– O princípio da dignidade da pessoa humana (1.º CRP),

– O princípio da proporcionalidade contido na ideia de estado de direito democrático (art. 2.º CRP)

– O princípio da igualdade (13.º, n.º 2, CRP),

– O regime específico dos direitos, liberdades e garantias (18.º CRP), (…)

           

            O representante do Ministério Público no Tribunal alegou:

 

«1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.

Importa, no âmbito desta contra-alegação, apresentada no recurso interposto pelas recorrentes A. e B., do acórdão da Relação de Lisboa, proferido a p. 153 e segs., realizar um esforço de síntese e condensação, que de algum modo sirva de contraponto à desmesurada extensão das peças processuais produzidas pelas recorrentes, bem expressa nas 198 (!) conclusões da respectiva alegação, em manifesta desconsideração pelo ónus da concisão que naturalmente subjaz a tal figura processual.

Assim, cumpre notar que:

– o presente recurso apenas poderá ter sentido enquanto reportado à alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, sendo verdadeiramente incompreensível a invocação, no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal Constitucional, das alíneas c) e f) daquele artigo 70.º; na realidade, é evidente e incontroverso que, no caso dos autos, a Relação, no acórdão recorrido, não recusou aplicar qualquer norma legal com fundamento em violação da lei com valor reforçado (sustentando, ao que parece, as recorrentes, de forma manifestamente inadequada à fisionomia de tal recurso, que lhes teria sido “recusada a aplicação da norma constante do n.º 1 do artigo 18.º da Constituição”), tal como resulta perfeitamente incompreensível a invocação da alínea f) do n.º 1 do mesmo artigo 70.º, parecendo neste caso, que se pretenderá suscitar uma pretensa inconstitucionalidade de decisões judiciais ou administrativas, olvidando o carácter necessariamente normativo do controlo da constitucionalidade cometido ao Tribunal Constitucional;

– a “norma” questionada é – apenas e tão somente – a que resulta dos artigos 1577.º e 1628.º, alínea e), do Código Civil, enquanto consideram requisito absolutamente essencial à celebração do casamento a diversidade de sexo dos nubentes, considerando a lei acarretar o vício – de máxima gravidade – de inexistência jurídica a preterição de tal requisito fundamental;

– parâmetro de aferição da constitucionalidade serão as normas constantes dos artigos 13.º – enquanto consagradora do princípio constitucional da igualdade – e 36.º, enquanto estabelece a garantia institucional de “contrair casamento em condições de plena igualdade” – não nos parecendo convocável a garantia de constituição e tutela de família, resultante deste preceito conjugado com o artigo 67.º, já que – como, aliás, nota a decisão recorrida, – nada obstou a que as recorrentes, mesmo sem a celebração “jurídica” do casamento civil, pudessem constituir “família”;

– carece totalmente de sentido a invocação, feita a p. 194, do regime constante dos artigos 67.º e 68.º da Lei do Tribunal Constitucional – ou seja, da figura e dos efeitos da verificação da inconstitucionalidade por omissão, obviamente incompatível com o domínio da fiscalização concreta em que nos situamos. Tal implica obviamente que a decisão a proferir pelo Tribunal Constitucional não possa, neste processo, limitar-se, em nenhumas circunstâncias, à mera verificação de que a Constituição não estaria a ser “cumprida” ou “executada” pela omissão de medidas legislativas – devolvendo ao legislador, obrigado a editá-las, tal tarefa. Bem pelo contrário – e como adiante se fará notar – cabe-lhe apenas julgar, de pleno, a questão de constitucionalidade normativa suscitada, proferindo-se razão ou provimento aos argumentos das recorrentes – decisão “aditiva” ou “modificativa”.

Como é sabido – e vem sendo reiteradamente afirmado pela jurisprudência constitucional – o princípio da igualdade comporta uma vertente de controlo negativo, destinando-se a sua aplicação, não a permitir ao juiz (mesmo ao constitucional) substituir-se ao legislador, democraticamente eleito, na realização das ponderações constitutivas para que está legitimado, mas tão somente a banir do ordenamento jurídico soluções arbitrárias, discricionárias, absolutamente carecidas de qualquer suporte material razoável e adequado.

Ora, ao contrário do que pretendem as recorrentes, parece-nos insustentável pretender que os “limites” ou “restrições” à plena liberdade de celebração do casamento – e que não consubstanciam apenas na exigência, questionada nos autos, de que os nubentes sejam “duas pessoas de sexo diferente”, mas também na previsão de um sistema normativo que comporta as figuras dos impedimentos matrimoniais, dirimentes ou meramente impedientes (artigos 1600.º/1609.º do Código Civil) – consubstanciam o estabelecimento de uma solução legislativa qualificável como “arbitrária ou discricionária”.

Podendo naturalmente, de acordo com os entendimentos e sensibilidades pessoais, e da comunidade jurídica, em cada momento histórico, questionar-se a opção legislativa, plasmada no nosso Código Civil, não pode seguramente qualificar-se o regime jurídico em vigor como absolutamente carecido de qualquer suporte material – e, portanto, traduzindo a imposição de uma solução legislativa puramente “arbitrária”.

Como é evidente, nada obriga o legislador infraconstitucional a acolher, em termos plenos e absolutamente igualitários, os vários conceitos sociológicos de “família”, de modo a que – por directa imposição constitucional – a todos os tipos de família tenha de outorgar exactamente o mesmo grau de reconhecimento e de tutela legal.

Note-se que a argumentação das recorrentes implicaria que – a proceder o recurso, por se considerar, porventura, que a “discriminação” imputada pelas recorrentes à lei civil, traduziria violação do princípio da igualdade – devesse este Tribunal Constitucional proferir “decisão aditiva”, ampliando jurisprudencialmente o próprio instituto legal do casamento, tal como decorre, na sua fisionomia essencial, das previsões normativas da lei civil.

Na verdade, tal tipo de decisão, sendo a forma tida por adequada para repor o princípio constitucional da igualdade, quando violado por determinado regime restritivo, limitativo ou “discriminatório” (cf. Rui Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, UCE, pg. 456 e sgs.), carece de ser utilizado com particulares cautelas, podendo o seu uso, excessivo ou imoderado, ser dificilmente compatível com a proibição constitucional de exercício de funções materialmente legislativas pelo órgão jurisdicional, subjacente ao princípio estruturante da separação de poderes.

Desde logo, tal tipo de decisão está naturalmente proscrito nos domínios em que vigora o princípio da tipicidade ou da legalidade: assim, por exemplo, em matéria penal, estará, a nosso ver, absolutamente vedado ao juiz constitucional – mesmo que, porventura, entenda que a não inclusão em certo tipo criminal de determinados comportamentos ilícitos viola “arbitrariamente” o princípio da igualdade – emitir um juízo de inconstitucionalidade material que inovatoriamente fosse ampliar a própria norma incriminadora, “mandando” punir comportamentos que o legislador parlamentar não tivesse incluído efectivamente no tipo legal do crime.

Um segundo limite às decisões “modificativas” ou “aditivas” verifica-se nos casos em que a exacta definição do regime jurídico que irá decorrer da ampliação do sentido possível comportado pela norma em causa não decorre automaticamente de uma norma ou princípio constitucional, dependendo inelutavelmente do exercício de uma margem de “discricionariedade legislativa” – podendo o respeito pela Lei Fundamental ser plenamente assegurado através do estabelecimento de diferenciados regimes normativos.

É evidente que, neste tipo de situações, está excluída liminarmente a possibilidade de o Tribunal Constitucional – mesmo que verifique a violação de certa norma constitucional – tratar de a “suprir”, criando ele próprio o regime normativo que tenha por adequado ao respeito pela Constituição: tal operação nunca poderá ser feita no âmbito de um processo de verificação da inconstitucionalidade por acção, já que – sendo plenamente compatíveis com os princípios constitucionais vários regimes legais – é naturalmente necessário que se devolva ao legislador, democraticamente legitimado, a tarefa de realizar as indispensáveis ponderações ou opções legislativas, naturalmente arredadas da competência decisória do órgão jurisdicional.

É este, aliás, o sentido e a justificação do mecanismo da verificação da inconstitucionalidade por omissão – cumprindo, neste âmbito apenas ao Tribunal Constitucional verificar que certa norma constitucional, impositiva de um dever específico de legislar, não está a ser adequadamente cumprida, por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequível tal norma constitucional – não cabendo obviamente, neste caso, ao Tribunal Constitucional mais do que dar conhecimento da omissão ao órgão legislativo competente, a fim de que este – e não obviamente o Tribunal – “crie” o direito infraconstitucional adequado à execução da Lei Fundamental.

Ambos os limites à admissibilidade das decisões “modificativas” ou “aditivas” se verificam no caso ora em apreciação.

Desde logo, vigora em matéria de direito matrimonial um princípio de legalidade, que naturalmente obsta a que um órgão jurisdicional se pudesse, num processo de fiscalização concreta, substituir ao legislador, de modo a inovatoriamente “criar” uma figura análoga à prevista no artigo 1577.º do Código Civil, que abrangesse a celebração de “casamento” entre duas pessoas do mesmo sexo, adequando de seguida, ele próprio, todas as normas legais em vigor (disposições atinentes à deliberação ou ao registo de casamento, preceitos reguladores dos efeitos pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, regime da dissolução do casamento…) à nova figura ou instituto jurídico que, através da ampliação realizada, “criara” em substituição do legislador!

Em segundo lugar – e mesmo que hipoteticamente se pudesse dar por verificada a violação do princípio da igualdade – parece-nos evidente que a “reposição” da igualdade violada não tem de passar necessariamente, por imposição da Constituição – pela total e absoluta extensão do regime jurídico do casamento, previsto actualmente no Código Civil, a todas as uniões entre pessoas do mesmo sexo.

Nada impede, como é óbvio, que – entre as figuras do “casamento”, tal como está actualmente regulado no Código Civil, e da mera “união de facto”, sujeita a uma tutela jurídica meramente “parcelar” ou “residual” – a opção legislativa, eventualmente ditada pelo princípio da igualdade, se pudesse legitimamente traduzir na criação de uma inovatória figura intermédia, detentora de um reconhecimento ou tutela jurídica, eventualmente acrescida relativamente às meras “uniões de facto”, mas diferenciada, relativamente ao conjunto de efeitos jurídicos associados pelo Código Civil à celebração do casamento (…).»

 

            4. O relator ouviu as recorrentes sobre as questões suscitadas pelo Ministério Público na sua alegação. Em resposta, disseram:

 

«1. O presente recurso tem como fundamento processual apenas a alínea b) do n.º 1 do art. 70.º da Lei n.º 28/82.

2. A alusão a outras alíneas e artigos no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional limitou-se a dar sequência a argumentos e a decisões do acórdão recorrido e das respectivas alegações do Ministério Público, a que o dever de patrocínio impunha atender.

3. Deve, pois, o recurso ser conhecido na totalidade.

4. O Ministério Público parece entender que as disposições constitucionais relevantes para a decisão do recurso seriam apenas os arts. 13.º, 36.º, n.º 1, e 67.º CRP.

5. As recorrentes, porém, conforme ficou bem expresso no final das conclusões das suas alegações, invocaram:

— O princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º CRP),

— O princípio da proporcionalidade e do estado de direito democrático (art. 2.º CRP)

— O princípio da igualdade (art. 13.º, n.ºs 1 e 2, CRP),

— O regime específico dos direitos, liberdades e garantias (art. 18.º, n.º 2, CRP)

— O direito ao livre desenvolvimento da personalidade (art. 26.º CRP),

— O direito fundamental de contrair casamento (art. 36.º, n.º 1, CRP),

— O reconhecimento da família como célula social fundamental (art. 67.º CRP).

6. A extensão das alegações e respectivas conclusões, a que se refere o Ministério Público, não é relevante para a delimitação do tema e do objecto do recurso.

7. Não pode, pois, o Tribunal Constitucional deixar de aferir a constitucionalidade das normas do Código Civil em causa à luz de todas estas regras e princípios, atendendo aos múltiplos argumentos jurídicos em que se desdobram e que vão sintetizados nas conclusões das alegações de recurso.

8. Subjaz ao restante das alegações do Ministério Público, aparentemente dedicado a aspectos de direito substantivo, a mesma ideia de “não conhecimento do recurso”.

9. Alega o Ministério Público que o presente recurso exigiria ao Tribunal Constitucional o exercício de “funções materialmente legislativas”, em violação do princípio da separação de poderes.

10. O Ministério Público alega como que uma “incompetência substantiva”, passe a expressão, do Tribunal Constitucional para a decisão do presente recurso, que deveria traduzir-se numa decisão de improcedência.

11. Todavia, as recorrentes pretendem apenas a declaração da inconstitucionalidade da norma contida nas palavras “de sexo diferente”, no art. 1577.º CC, e da norma expressa pela alínea e) do art. 1628.º CC.

12. A supressão destas normas legais, por violarem a Constituição, é por excelência tarefa do Tribunal Constitucional.

13. Não se pede ao Tribunal Constitucional que elabore um regime jurídico destinado à protecção dos casais de pessoas do mesmo sexo, mas apenas que suprima uma restrição legal atentatória de princípios constitucionais.

14. A prova de que não se pede ao Tribunal a elaboração de um novo regime jurídico o que, isso sim, constituiria o exercício de funções materialmente legislativas — resulta de três aspectos que ficaram bem clarificados nas alegações das recorrentes e que aqui se sintetizam, para facilitar a apreciação das alegações do Ministério Público.

15. Conforme resulta das pp. 80 e ss. e 170 ss. das alegações das recorrentes, e que também poderia ler-se em pormenor nos pareceres juntos da autoria de Pedro Múrias e de Luís Duarte d’Almeida, só a atribuição do casamento aos casais do mesmo sexo cumpre os ditames constitucionais.

16. O casamento tem um valor próprio que não se reduz aos seus efeitos patrimoniais, valor esse evidente na menção específica que lhe faz o art. 36.º, n.º 1, CRP, estabelecendo o acesso ao casamento como direito fundamental.

17. As normas cuja inconstitucionalidade se sustenta vedam o acesso a esse bem jurídico constitucionalmente protegido, e fazem-no sem qualquer fundamento constitucional inteligível.

18. Portanto, só a supressão simples de tais normas cumpre a Constituição.

19. Não havendo lugar, pois, à elaboração de nenhum regime jurídico específico, também não há lugar a nenhuma tarefa materialmente legislativa.

20. Razão por que cabe ao Tribunal Constitucional declarar a sua inconstitucionalidade, como único modo de prover à tutela dos casais do mesmo sexo, que é constitucionalmente imposta, como o Ministério Público, muito doutamente, sempre deixa implícito.

21. O Ministério Público dá alternativamente a entender que, admitindo-se a necessidade constitucional do casamento entre pessoas do mesmo sexo, ainda faltaria ao legislador estabelecer qual dos possíveis regimes jurídicos matrimoniais deveria aplicar-se aos casais do mesmo sexo, de modo que novamente se exigiria uma intervenção do legislador.

22. Contudo, os regimes matrimoniais vigentes são alheios ao sexo dos nubentes ou cônjuges, de modo que não é necessária ou porventura admissível qualquer reelaboração das leis.

23. De novo se observa, então, que o presente recurso não suscita nenhuma intervenção materialmente legislativa, antes cabendo a decisão de procedência na esfera do constitucional e legalmente conferido à competência do Tribunal Constitucional.

24. A “decisão aditiva” a tomar cabe de pleno no modo como o princípio da separação de poderes articula as funções legislativa e jurisdicional.

25. O mesmo caberia dizer ainda que se admitisse que o legislador tivesse liberdade para criar um meio de tutela dos casais do mesmo sexo distinto do casamento, visando essencialmente aspectos patrimoniais.

26. Ainda nesse caso, e sem conceder, a decisão aqui pretendida não exigiria ao Tribunal Constitucional uma intervenção materialmente legislativa, conforme pode ler-se com mais detenção logo no início das alegações das recorrentes, de novo nas suas pp. 220 ss., e nos pareceres de Carlos Pamplona Corte-Real e de Isabel Moreira, que citam, aliás, decisões deste Tribunal e vasta doutrina no mesmo sentido.

27. Ainda que o legislador tivesse a referida liberdade de criar um “meio alternativo” ao casamento — numa linha, diga-se, separate but equal… — a “decisão aditiva” que consiste em declarar a inconstitucionalidade das actuais regras do Código Civil que vedam o casamento a casais do mesmo sexo continuaria a ser a única via correcta para o Tribunal Constitucional.

28. Isto porque, de facto e actualmente, não existe esse regime alternativo.

29. Tal como as leis estão hoje de facto formuladas, o casamento é o único dispositivo legal capaz de dar aos casais do mesmo sexo que a desejem a protecção que o Ministério Público e bem! – reconhece ser constitucionalmente imposta.

30. Quando só há um regime jurídico que confere uma protecção constitucionalmente relevante e, aliás, exigida não pode o legislador restringi-lo a uma categoria de pessoas em violação da igualdade.

31. É isto que, em todos os casos, justifica as “decisões aditivas” pelos tribunais constitucionais, há muito reconhecidas como admissíveis.

32. E é isto que leva à declaração de inconstitucionalidade das específicas normas contidas nesse regime — ainda que a título de “definições legais” — que excluem da sua tutela certas categorias de pessoas.

33. O Tribunal Constitucional não tomará, pois, uma decisão materialmente legislativa.

34. Limitar-se-á a julgar inadmissível um regime jurídico que cria uma desigualdade constitucionalmente proibida, ainda que essa desigualdade pudesse porventura ser evitada pelo legislador através de um regime jurídico “alternativo”.

35. A “decisão aditiva” é, evidentemente, a intervenção mínima possível do Tribunal Constitucional, o que bem se revela na metáfora de que o resultado da decisão pretendida é o simples riscar das palavras “de sexo diferente” no art. 1577.º CC e da alínea e) do art. 1628.º CC.

36. Sem metáfora, a intervenção mínima, que sempre cabe ao Tribunal Constitucional, é a declaração da inconstitucionalidade das normas — e da decisão subjacente — que vedam aos casais do mesmo sexo o acesso a certa protecção constitucionalmente exigida.

37. Ainda sem conceder, esta decisão sempre reservaria ao legislador a liberdade de repor posteriormente a exclusão dos homossexuais do casamento criando um regime jurídico alternativo.

38. Sistema que, como se disse atrás, também seria inconstitucional, mas cuja consideração expõe com mais crueza a inconstitucionalidade do sistema actual, em que o (único) regime existente de tutela patrimonial satisfatória dos casais que a queiram inclui duas normas que dela afastam uma parte desses casais.

39. Portanto, a supressão dessas normas, por invalidade, não afecta em si mesma a liberdade do legislador e torna evidente que, ainda no plano substantivo, o Tribunal Constitucional deve conhecer plenamente o recurso, numa decisão a todos os títulos jurisdicional e que não belisca as competências dos órgãos legislativos.

40. Salvo na estrita medida em que a Constituição da República Portuguesa é efectivamente normativa, introduzindo limites à actividade do legislador.

Termos em que deve o recurso ser conhecido e julgado procedente, declarando-se para o caso concreto a inconstitucionalidade das regras do Código Civil que proíbem o acesso ao casamento a casais do mesmo sexo.»

 

IIDelimitação do âmbito do recurso

 

            5. Começaram as recorrentes por fazer subordinar o seu recurso às alíneas b), c) e f) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, disposições que permitem o recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais “b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”, “c) Que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo, com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado”, e “f) Que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e)”. No entanto, através do requerimento que, por fim, apresentaram em resposta às questões suscitadas pelo Ministério Público, as recorrentes desistiram dos recursos interpostos ao abrigo das alíneas c) e f) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, reduzindo o âmbito da pretensão à já citada alínea b) do dito preceito legal, limitando-se a impugnar a norma alegadamente inconstitucional que a decisão recorrida, ou seja, o acórdão da Relação de Lisboa, aplicou como razão de decidir da sua decisão e que, em seu entender, é “apenas” a contida nos artigos 1577.º e 1628.º alínea e), ambos do Código Civil.

            Contudo, o carácter instrumental do recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade conduz a que se aceite, como sempre fez o Tribunal, que o objecto do recurso se circunscreve, afinal, à norma que o tribunal recorrido efectivamente aplicou como fundamento jurídico da sua decisão, não se estendendo às normas que se incluem em ponderações meramente argumentativas do raciocínio jurisdicional contido no aresto em análise. E a verdade é que o acórdão aqui recorrido é bem claro quanto à identificação da norma que aplica ao caso, de forma definitiva, e que é a que consta do artigo 1577.º do Código Civil; a mobilização da norma da alínea e) do artigo 1628.º do mesmo Código traduz um argumento de reforço da solução adoptada e nunca poderia ser aplicada ao caso por não estar obviamente em causa um casamento contraído por duas pessoas do mesmo sexo.

Em conclusão, o presente recurso tem o seu âmbito definido pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC e é seu objecto a norma do artigo 1577.º do Código Civil, com o sentido de que o casamento apenas pode ser celebrado entre pessoas de sexo diferente.

 

III – Fundamentos

 

            6. É o seguinte o texto da norma impugnada:

 

«Artigo 1577.º

(Noção de casamento)

Casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código.»

 

 

            Para a decisão recorrida, esta norma não atentaria contra o disposto no artigo 13.º da Constituição, antes de mais, porquanto o princípio aqui consagrado não impede que o legislador ordinário proceda a distinções, mas apenas impede as discriminações arbitrárias. Por outro lado, segundo a decisão recorrida, «as recorrentes invocam a violação do disposto no artigo 36.º, n.º 1, da Constituição, dado que, de forma resumida, ao não poderem celebrar casamento, lhes está a ser vedado o direito de constituir família». Ora, segundo a Relação, «aqui reside um fundamental equívoco: o n.º 1 do artigo 36.º da CRP consagra dois direitos (e não um só), os quais consistem: no direito a constituir família e no direito a contrair casamento (e esses dois direitos não se confundem)». Acresce que «nos vários números do artigo 36.º da CRP, e no que respeita ao casamento, apesar de não constituírem normas fechadas, se remete para o legislador ordinário a regulamentação dos requisitos e os efeitos do casamento e até a sua forma de celebração». Finalmente, ainda quanto ao artigo 36.º, salienta a decisão recorrida que «ao autonomizar o casamento (…) o legislador constitucional revelou implicitamente não ignorar as coordenadas estruturais delimitadoras do casamento na ordem jurídica portuguesa. E, reitera-se, entre o núcleo essencial figura a celebração do casamento por pessoas de sexo diferente». Finalmente, quanto à norma do artigo 67.º da Constituição sustentou a decisão recorrida que a mesma «releva mais no sentido da família em si, e não na sua constituição».

            Por outro lado, para além de apreciar as normas impugnadas à luz das normas e princípios constitucionais citados, a decisão recorrida desenvolveu ainda uma outra linha de argumentação. Segundo se diz em tal decisão, «o legislador constitucional, ao relegar para o legislador ordinário – não obstante da delimitação da noção de casamento ínsita na ordem jurídica portuguesa – a regulamentação dos requisitos e dos efeitos, não fechou as portas às eventuais alterações que o legislador ordinário entendesse útil efectuar, em face das exigências decorrentes da própria transformação da sociedade portuguesa». Ora, segundo a Relação, «uma coisa é a violação do princípio – o que não se verificou –, coisa diversa é o legislador ordinário não lançar mão do caminho que lhe foi deixado aberto». É neste contexto que a decisão recorrida se reporta à «“Resolução sobre a igualdade de direitos dos homens e mulheres homossexuais na Comunidade Europeia” (A3-0028/94, de 8 de Fevereiro) do Parlamento Europeu». Também a este propósito «se reitera que a questão não é apenas perspectivada pelo ângulo da existência do casamento (que pode ser uma via), mas que existem outras perspectivas da problemática (ao contrário do que as recorrentes pretendem fazer crer)». Neste sentido, salienta o acórdão recorrido que, «ao contrário do que sustentam as recorrentes, as soluções adoptadas nos ordenamentos jurídicos europeus não passaram somente pela admissão da celebração de casamento por parte de pessoas do mesmo sexo, mas também (e essencialmente) pelas uniões registadas (que não casamentos)».

            A argumentação das recorrentes em prol da inconstitucionalidade da norma impugnada é extensa, incorporando os principais passos argumentativos dos pareceres que juntaram aos autos. Procurando respigar aqui o que de mais importante nela se pode colher, dir-se-á serem as seguintes as ordens de razões avançadas pelas recorrentes para sustentar a inconstitucionalidade da norma impugnada.

            Através do presente recurso, as recorrentes pretendem que «se ponha termo à persistente e discriminatória afirmação de que, por serem homossexuais, (…) têm uma capacidade jurídica inferior à dos demais cidadãos». Para o efeito, começam por sustentar que «se sabemos que a lei reserva este direito [a contrair casamento em condições de plena igualdade] para pessoas de sexo diferente, esse saber não pode orientar o percurso da análise do enquadramento jurídico da questão; isto é, a Lei Fundamental deve ser lida sem o óculo do direito vigente, sob pena de se inverter a hierarquia das fontes de direito. Interessa determinar o que, à data, independentemente do que prescreva o direito ordinário, a Constituição impõe e, daí, retirar as devidas consequências». Daí que se afigure infundado pretender afastar a inconstitucionalidade das normas impugnadas com base na figura da garantia de instituto. Esta causaria «um círculo vicioso normativo, o privilégio arbitrário do passado, alheio à Constituição, a desconsideração das posições subjectivas e a desconsideração dos fins últimos dos institutos, além de conduzir a uma vacuidade argumentativa». A «garantia de instituto promove imobilismos sociais quer de privilégios de minorias, quer, no caso do casamento, de discriminação de minorias, vedando-lhes o acesso a um bem».

            Para as recorrentes, «a Lei Fundamental evoluiu num sentido específico de protecção dos direitos que possam ser afectados por força da orientação sexual do titular». Isso acontece no artigo 13.º, n.º 2, e no artigo 26.º: «a dignidade da pessoa humana concretiza-se num imperativo de igual tratamento das pessoas, estando expressamente proibida a discriminação com base na orientação sexual, e finalmente temos o direito de todos de contrair casamento, num sentido de universalidade».

            O casamento civil, «que só vale nos termos reconhecidos pela lei e pela Constituição, atribui um estatuto simbólico que ultrapassa em muito os deveres jurídicos indicados expressamente no Código Civil e noutros diplomas». Ora, «não se consegue divisar qualquer motivo constitucionalmente atendível para negar a um casal de pessoas do mesmo sexo o acesso a este “bem jurídico”».

            Desde logo, não se pode atribuir qualquer finalidade procriativa ao casamento, atendendo ao regime legalmente estabelecido. Assim, não existe um limite máximo de idade para casar, nada obsta ao casamento de pessoas inférteis, a infertilidade ou o uso de contraceptivos não são fundamento de divórcio, o casamento pode ser celebrado in articulo mortis. Pelo contrário, «com a progressiva hegemonia (histórica) do conceito de Amor Romântico, o casamento passou a ter como razão primeira o sentimento, sem prejuízo do surgimento de outras variáveis e do estilhaçar do binómino casamento/filhos»

            Assim sendo, «o acesso de um casal de duas pessoas do mesmo sexo apenas à união de facto, ao contrário dos casais heterossexuais, que optam livremente entre a união de facto e o casamento, envolve uma distinção que carece de fundamento constitucional».

            Do reconhecimento constitucional do casamento entre pessoas do mesmo sexo «nenhum prejuízo ocorrerá para quem quer que seja, e nenhumas consequências advirão para os casais heterossexuais, para quem aquele direito, que já lhes é reconhecido, resultará incólume».

            A «ideia de que o casamento homossexual viria “suprimir” ou “desfigurar” o núcleo essencial do casamento não se desprende de uma tutela de sentimentos gerais de moralidade sexual e revela um juízo de desvalor da homossexualidade, incluindo a ideia de que a heterossexualidade representa a situação mais “normal”», à semelhança do que «sucedia com o anterior artigo 175.º do Código Penal».

            A recusa do casamento entre pessoas do mesmo sexo releva de um «fenómeno homofóbico inaceitável à luz da Constituição», negando aos homossexuais «a possibilidade de assegurarem mutuamente direitos sucessórios, de pensões de sobrevivência, de comunhão patrimonial, de valoração jurídica aos compromissos consubstanciados nos deveres conjugais, etc., etc.».

            Negar às pessoas do mesmo sexo o casamento significa negar que «as suas famílias tenham de pleno o estatuto de elementos fundamentais da sociedade».

            Ao consagrar o casamento, a ordem jurídica limita-se a proporcionar um conjunto de efeitos jurídicos, não se encontrando alojado no Direito «o significado social de supremo compromisso existencial entre duas pessoas». Na visão do casamento, à ideia de contrato, «favorável à autonomia e à preponderância do indivíduo», opõe-se a instituição, «tendente à afirmação dos interesses (valores) supra-individuais».

            Finalmente, «dada a menção da orientação sexual no artigo 13.º, n.º 2, da CRP, presume-se a inconstitucionalidade de todas as distinções legais formal ou substancialmente dependentes da orientação sexual», pelo que «o ónus argumentativo cabe à tese da não inconstitucionalidade do casamento homossexual».

            Nas suas alegações de recurso, atrás reproduzidas, o Ministério Público veio pugnar pela não inconstitucionalidade das normas impugnadas. Antes de mais, sustentou que o «parâmetro de aferição da constitucionalidade serão as normas constantes dos artigos 13.º – enquanto consagradora do princípio constitucional da igualdade – e 36.º, enquanto estabelece a garantia institucional de “contrair casamento em condições de plena igualdade”, – não nos parecendo convocável a garantia de constituição e tutela de família, resultante deste preceito conjugado com o artigo 67.º, já que – como, aliás, nota a decisão recorrida – nada obstou a que as recorrentes, mesmo sem a celebração “jurídica” do casamento civil, pudessem constituir “família”».

            Quanto ao princípio da igualdade, sustenta o Ministério Público que «não pode seguramente qualificar-se o regime jurídico em vigor como absolutamente carecido de qualquer suporte material – e, portanto, traduzindo a imposição de uma solução legislativa puramente “arbitrária”». Mas ainda que assim não se entendesse, a procedência da argumentação das recorrentes implicaria que «devesse este Tribunal Constitucional proferir “decisão aditiva”, ampliando jurisprudencialmente o próprio instituto legal do casamento, tal como decorre, na sua fisionomia essencial, das previsões normativas da lei civil».

            Ora, este tipo de decisão encontrar-se-ia vedado, em primeiro lugar, «nos domínios em que vigora o princípio da tipicidade ou da legalidade». Em segundo lugar, o mesmo tipo de decisão aditiva não seria possível «nos casos em que a exacta definição do regime jurídico que irá decorrer da ampliação do sentido possível comportado pela norma em causa não decorre automaticamente de uma norma ou princípio constitucional, dependendo inelutavelmente do exercício de uma margem de “discricionariedade legislativa” – podendo o respeito pela Lei Fundamental ser plenamente assegurado através do estabelecimento de diferenciados regimes normativos». Ambos os limites se verificam, segundo o Ministério Público, no caso em apreciação.

 

            7. A correcta compreensão da questão de inconstitucionalidade suscitada nos presentes autos impõe, antes de mais, a clara percepção de que tal matéria tem sido objecto de apreciação, com resultados nem sempre coincidentes, em outras jurisdições. Cabe começar por mencionar de um modo especial as decisões jurisdicionais que sobre o assunto foram adoptadas no Canadá, na África do Sul e nos Estados Unidos da América.

 

            7.1. Nos Estados Unidos da América, país em que são os estados, e não o governo federal, a definir os requisitos do casamento, o Supremo Tribunal do Hawaii, logo em 1993, considerou que a Constituição permitia a restrição do casamento aos casais heterossexuais apenas se o Estado pudesse demonstrar interesses relevantes justificando a exclusão dos homossexuais. Todavia, antes que o Supremo Tribunal tivesse oportunidade de se pronunciar novamente sobre o assunto, a constituição estadual foi revista, tendo em vista assegurar a definição do casamento com a união entre um homem e uma mulher (cfr. Baehr v. Lewin, 5 de Maio de 1993, disponível em diversos sítios da Internet, à semelhança de todas as demais decisões judiciais e actos legislativos adiante citados). Posteriormente, o Supremo Tribunal do Vermont, numa decisão de 1999 (cfr. Baker v. State, de 20 de Dezembro de 1999) considerou que o princípio da igualdade consagrado na constituição estadual proibia a exclusão de homossexuais dos benefícios e protecções associadas ao matrimónio, sustentando também que as disposições legais sobre o casamento se manteriam em vigor durante um período razoável de tempo, de modo a permitir que o poder legislativo adoptasse um regime adequado. Nesta sequência, foi adoptado um acto legislativo consagrando uma união civil que assegura aos homossexuais a mesma protecção que o casamento atribui aos heterossexuais. Nos termos do n.º 2 do § 1202 do Act 91 of 2000, An Act Relating to Civil Unions, constitui um dos requisitos de uma união civil válida que os seus membros «sejam do mesmo sexo e, por isso, excluídos das leis do casamento deste estado».

            Num plano diferente coloca-se a decisão do Supremo Tribunal Judicial do Estado do Massachusetts de 2003, sustentando que as garantias da igualdade e da liberdade protegidas pela constituição estadual tornam inconstitucional o casamento apenas entre homem e mulher, porque não existe uma «base racional» para o manter. Na opinião da maioria, alcançada por quatro dos setes juízes que a votaram, afirma-se o seguinte: «O casamento é uma instituição social vital. O compromisso exclusivo de dois indivíduos entre si nutre o amor e o apoio mútuo; traz estabilidade à nossa sociedade. Para aqueles que escolhem casar, e para os seus filhos, o casamento propicia abundantes benefícios jurídicos, financeiros e sociais. Em troca, impõe pesadas obrigações jurídicas, financeiras e sociais. A questão que temos perante nós é a de saber se, em termos consistentes com a Constituição do Massachusetts, a Comunidade pode negar as protecções, benefícios e obrigações conferidos pelo casamento civil a dois indivíduos do mesmo sexo que pretendam casar. Concluímos que não pode. A Constituição do Massachusetts afirma a dignidade e igualdade de todos os indivíduos. Proíbe a criação de cidadãos de segunda classe. Para chegar a esta conclusão tomámos em plena consideração os argumentos avançados pela Comunidade. Mas esta falhou quanto a identificar qualquer razão constitucionalmente adequada para negar o casamento civil aos casais homossexuais».

            O Supremo Tribunal Judicial do Massachusetts analisa, e procura refutar, três possíveis argumentos legislativos para excluir os homossexuais do casamento: a) o casamento é o contexto ideal para a procriação; b) o casamento entre pessoas de sexo diferente é o contexto ideal para a criação dos filhos; c) o casamento entre pessoas de sexo diferente preserva os recursos financeiros escassos do Estado e dos privados. Quanto ao primeiro argumento, entendeu o Tribunal que os efeitos do casamento não pressupõem a procriação, uma vez que a fertilidade não é condição do casamento nem, em si mesma, um fundamento do divórcio. Deste modo, «é o compromisso exclusivo e permanente dos membros do casal um perante o outro, e não a criação dos filhos, que é o sine qua non do casamento civil». O argumento segundo o qual o casamento é procriação «destaca a única diferença insuperável entre casais homossexuais e casais heterossexuais e transforma essa diferença na essência do casamento jurídico». Isso equivaleria, na realidade, a «aceitar o estereotipo destrutivo segundo o qual as relações homossexuais são inerentemente instáveis e inferiores às relações heterossexuais e não são dignas de respeito». Quanto ao segundo argumento, não existe qualquer prova de que «proibir o casamento às pessoas do mesmo sexo irá aumentar o número de casais escolhendo a celebração do casamento heterossexual com o objectivo de ter e educar filhos». O terceiro argumento sustenta que as pessoas do mesmo sexo que pretendem casar são supostamente mais independentes de um ponto de vista financeiro e assim menos necessitadas do benefícios públicos conjugais. Simplesmente, este modo de ver ignoraria que muitas das pessoas do mesmo sexo que pretendem casar tem dependentes a seu cargo, nas mesmas condições que as pessoas actualmente casadas.

            Em face da argumentação expendida, o Supremo Tribunal Judicial do Massachusetts afasta a possibilidade de invalidar as leis que regulam o matrimónio, pois isso seria «totalmente inconsistente com o profundo compromisso da Legislatura na promoção de famílias estáveis e desmantelaria um princípio organizativo vital da nossa sociedade». Em vez disso, o Tribunal invocando o exemplo do Tribunal de Recurso de Ontário (no caso Halpern v. Toronto, de 2003), o mais elevado tribunal desta província do Canadá, escolheu a via de clarificar o sentido do casamento no âmbito da common law. Nas palavras do Tribunal, trata-se de uma via «inteiramente conforme a princípios estabelecidos da jurisprudência que dão poder a um tribunal para clarificar um princípio da common law à luz de padrões constitucionais em evolução». Assim, o casamento civil é entendido como significando «a união voluntária de duas pessoas enquanto esposos, com a exclusão de todas as outras. Esta reformulação repara a ofensa constitucional dos queixosos e favorece o objectivo do casamento no sentido de promover relações exclusivas e estáveis. Faz ainda progredir os dois interesses legítimos do Estado que o departamento [de Saúde Pública] identificou: providenciar um contexto estável para a criação dos filhos e salvaguardar os recursos do Estado. Deixa intacta a ampla discricionariedade do Estado para regular o casamento».

            Sustentando, em voto de vencido, a base racional das leis do casamento, o Juiz Cordy sustentou que «admitidamente, as relações heterossexuais, a procriação e os filhos não estão necessariamente ligados (particularmente na idade moderna de uma efectiva e difundida contracepção e de programas de bem-estar social que conferem apoio), mas uma sociedade ordenada exige um mecanismo para lidar com o facto de que as relações heterossexuais comummente resultam na gravidez e nascimento de uma criança. O casamento é esse mecanismo».

            Pouco tempo depois, foi a vez de o Tribunal Superior do Estado de Nova Jersey se pronunciar sobre o assunto, no caso Lewis v. Harris, de 14 de Junho de 2005, uma decisão igualmente tangencial, tomada por dois votos contra um. Aí se afirmou que a premissa essencial da opinião da maioria no caso Goodridge, segundo a qual o casamento é o compromisso exclusivo de dois indivíduos um para com o outro, constitui um juízo normativo em conflito com a tradicional, e ainda prevalecente em termos religiosos e sociais, visão do casamento como a união entre um homem e uma mulher que desempenha um papel vital na propagação da espécie e constitui o contexto ideal para a criação dos filhos. Assim a decisão Goodridge «não estabelece um direito de acesso igual ao casamento, sem olhar à raça ou qualquer outro factor discriminatório odioso, mas em vez disso altera significativamente a natureza desta instituição. Na verdade, a opinião da maioria reconhece, ela própria, que “a nossa decisão de hoje marca uma mudança significativa na definição do casamento, tal como este tem sido recebido pela common law, e compreendido por muitas sociedades desde há séculos”». A conclusão do Tribunal é a de que só o legislador poderá autorizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. No mesmo sentido, e também através de maiorias tangenciais, haveria ainda que indicar, sem carácter exaustivo, a decisão de 20 de Janeiro de 2005 do Tribunal de Recurso do Estado de Indiana, no caso Morrison v. Sadler, e a decisão do Supremo Tribunal do Estado de Washington de Julho de 2006, no caso Andersen v. King.

            Mais recentemente, o Supremo Tribunal da Califórnia, nos casos In re Marriage, decididos em 15 de Maio de 2008, uma vez mais por uma maioria tangencial, neste caso de quatro a três, veio consagrar, pela segunda vez nos Estados Unidos da América (depois da decisão no caso Goodridge), o direito constitucional dos homossexuais a casar. A questão que o Supremo Tribunal da Califórnia foi chamado a decidir, num Estado em que aos homossexuais são assegurados, através de um contrato de união entre pessoas do mesmo sexo designado «domestic partnership», essencialmente os mesmos direitos que o casamento proporciona aos heterossexuais, consiste em saber se «nestas circunstâncias, a não designação da relação oficial de um casal homossexual como casamento viola a Constituição da Califórnia». Para responder a esta questão o Tribunal apoia-se, por um lado, «na transformação fundamental e dramática na compreensão e tratamento jurídico dos indivíduos e casais homossexuais por parte deste Estado. A Califórnia repudiou as práticas e políticas do passado baseadas numa perspectiva comum que denegria o carácter geral e a moral dos indivíduos homossexuais e com base nas quais em dado momento se chegou a caracterizar a homossexualidade como uma doença, em vez de muito simplesmente uma das diversas variáveis da nossa comum e diversa humanidade». Actualmente, pelo contrário, reconhece-se que os indivíduos homossexuais têm «os mesmos direitos legais e o mesmo respeito e dignidade atribuídos a todos os outros indivíduos e são protegidos de discriminação na base da sua orientação sexual e, mais especificamente, reconhece[-se] que os indivíduos homossexuais são totalmente capazes de entrar numa relação comprometida e duradoura fundada no amor que pode servir como base de uma família e de tratar e educar responsavelmente crianças».

            Por outro lado, seria errada, no entender do Tribunal, a conexão que por vezes se estabelece entre casamento e procriação. Muito embora «a instituição jurídica do casamento civil possa ter tido origem em larga medida para promover uma relação estável tendo em vista a procriação e a educação das crianças (…), e embora os direitos de casar e procriar sejam usualmente tratados como aspectos intimamente relacionados dos interesses da liberdade e da privacidade protegidos pelas Constituições federal e estadual (…), o direito constitucional de casar nunca foi visto como apanágio exclusivo dos indivíduos que são fisicamente capazes de ter filhos».

            A conclusão do Tribunal é a de que o direito constitucional de casar deve ser atribuído, em igualdade de circunstâncias, aos casais homossexuais e aos casais heterossexuais. Esta redefinição do casamento não violaria a doutrina da separação de poderes na medida em que não seria determinada por uma questão de políticas públicas, ou pela questão de saber em que medida tal alteração seria mais apta a servir o interesse público, mas apenas de fazer respeitar as restrições impostas pela Constituição às medidas legislativas. Finalmente, estando em causa uma violação do princípio da igualdade, o Tribunal questiona-se sobre se o caminho a adoptar deve consistir na eliminação da violação da constituição, através da extensão do direito previsto no acto legislativo à categoria de pessoas que dele foi ilegitimamente excluída, ou, pelo contrário, na eliminação do direito para todos os seus possíveis destinatários. No caso, o Tribunal entendeu que ampliar a designação de «casamento» aos casais homossexuais é claramente mais consistente com a intenção provável do legislador, do que eliminar essa designação e substitui-la por uma outra, que se aplicaria uniformemente a todos os casais.

            Os votos de vencido a esta decisão não põem em causa que a atribuição de diferentes direitos no âmbito das uniões oficiais de homossexuais, por um lado, e dos casamentos entre pessoas de sexo diferente, por outro, seria violadora do princípio constitucional da igualdade. Apenas sustentam que a simples atribuição de um nome diferente a ambas as realidades o seja também, atendendo à persistente definição do casamento como a união de pessoas de sexo diferente. O juiz Baxter coloca a questão nos seguintes termos: «Ainda que as leis progressistas da Califórnia, recentemente adoptadas através do processo democrático, tenham sido pioneiras na atribuição a parceiros do mesmo sexo do direito de entrar em uniões jurídicas com todos os benefícios substantivos das uniões jurídicas entre pessoas de sexo diferente, violam ainda assim essas leis a Constituição da Califórnia apenas porque, no presente, em deferência para com uma longa e universal tradição, com base num voto popular convincente, e de acordo com uma política nacional expressa, reservam a expressão “casamento” para uniões entre pessoas de sexo diferente?»

            É de notar que através de consulta expressa por voto popular, realizada em 4 de Novembro de 2008, foi aprovada a Proposition 8, que introduziu uma emenda à Constituição do Estado da Califórnia no sentido de superar a acima referida decisão do Supremo Tribunal.

            Importa ainda mencionar a decisão do Supremo Tribunal do Estado de Connecticut, de 10 de Outubro de 2008, que reconhece o direito a casar a duas pessoas do mesmo sexo, apesar de serem reconhecidas as uniões civis entre estas, com direitos substancialmente iguais aos do casamento civil, e existir um processo legislativo visando a consagração do casamento entre pessoas do mesmo sexo. No caso Elizabeth Kerrigan et al. v. Commissioner of Public Health et al. (disponível em vários sítios da Internet), em que o Tribunal decidiu por uma maioria de quatro juízes contra três, o juiz Palmer, escrevendo pela maioria, concluiu que «à luz da história da perniciosa discriminação a que são sujeitos os gays e as lésbicas, e porque a instituição do casamento implica um estatuto e um significado que a recentemente criada classificação de uniões civis não incorpora, a segregação de casais heterossexuais e homossexuais em instituições separadas constitui um dano atendível». Segundo a opinião da maioria, «a nossa compreensão convencional do casamento deve dar lugar a uma mais hodierna apreciação dos direitos merecedores de protecção constitucional. Interpretando as nossas disposições constitucionais estaduais de acordo com princípios de igual protecção firmemente estabelecidos conduz inevitavelmente à conclusão de que as pessoas gays têm o direito de casar com a pessoa do mesmo sexo da sua escolha que reúna os requisitos previstos na lei para o efeito. Decidir de outro modo conduziria a termos de aplicar um conjunto de princípios constitucionais às pessoas homossexuais e outro para todas as outras. A garantia da igual protecção da lei, e a nossa obrigação de tornarmos efectiva, proíbe-nos de o fazer. Em conformidade com estas exigências constitucionais, aos casais de pessoas do mesmo sexo não pode ser negada a liberdade de casar».

            Em voto de vencido, o juiz Zarella afirmou que o entendimento da maioria segundo o qual os poderes públicos não conseguiram formular uma justificação suficiente para a limitação do casamento a pessoas de sexo diferente, «baseia-se sobretudo nas premissas não fundamentadas da maioria segundo as quais a essência do casamento é uma relação de compromisso e afecto entre dois adultos e que a única razão pela qual o casamento tem sido limitado a um homem e a uma mulher consiste na desaprovação moral das pessoas homossexuais, ou num ânimo irracional em relação a estas. Na verdade, a maioria não consegue, ao longo das 129 páginas da sua opinião, sequer identificar, e muito menos discutir, o verdadeiro propósito das leis do casamento, apesar de este constituir o primeiro, e crítico, passo em qualquer análise relativa à igual protecção». Ora, segundo o juiz Zarella, «a definição tradicional do casamento como a união entre um homem e uma mulher tem a sua base na biologia, não no fanatismo [biology, not bigotry]. Se o Estado deixou de ter interesse na regulação da procriação, essa é uma decisão que cabe à legislatura ou ao povo e não a este tribunal». Ainda segundo o mesmo juiz, «o Supremo Tribunal dos Estados Unidos e muitos outros tribunais estaduais reconheceram que o casamento tradicional exerce duas funções separadas, mas intimamente relacionadas, ambas decorrentes da capacidade de um casal composto por um homem e uma mulher para propagarem filhos. Em primeiro lugar, tendo a promoção do interesse da sociedade na sobrevivência da raça humana, a instituição do casamento honra e privilegia a única relação sexual – aquela que se estabelece entre um homem e uma mulher – que pode resultar no nascimento de uma criança. Em segundo lugar, tendo em vista proteger os frutos dessa relação e assegurar que a sociedade não é indevidamente onerada com procriação irresponsável, o casamento impõe obrigações de cuidado aos membros do casal entre si e destes para com os seus filhos». Assim sendo, surge como «óbvio que um casal que é incapaz de se empenhar no tipo de conduta sexual de que podem resultar crianças não se encontra situado do mesmo modo do que um casal que é capaz de tal conduta em relação à legislação que a visa privilegiar e regular». Deste modo, se a maioria entende que a única razão invocada para limitar o casamento aos heterossexuais consiste em afirmar “porque sim”, seria também possível entender que «a maioria simplesmente pressupõe no início da sua análise a resposta à questão central do caso e depois declina sequer abordar o único argumento – segundo o qual o casamento foi pensado para privilegiar e regular a conduta sexual que pode resultar no nascimento de uma criança – que qualquer tribunal alguma vez considerou ser persuasiva em determinar que uma tal resposta é incorrecta». Por outro lado, em relação à alegada desigualdade entre a previsão do casamento para os heterossexuais e da união civil para os homossexuais, pode razoavelmente pensar-se que «limitar o casamento a um homem e a uma mulher realiza bens sociais vitais, enquanto a instituição da união civil promove os legítimos interesses daqueles que a ela acedem». É, de resto, neste contexto que se compreende que a exclusão dos casamentos homossexuais nada tem a ver com a proibição dos casamentos inter-raciais, pois esta «afecta o direito fundamental de procriar, e a proibição constitucional desta afectação reconhece e promove o estatuto especial da conduta procriativa. Redefinir o casamento para incluir casais de pessoas do mesmo sexo não tem esse propósito ou efeito».

            Cumpre finalmente mencionar a decisão do Supremo Tribunal do Estado do Iowa, de 3 de Abril de 2009. Em tal decisão, o Tribunal decidiu, por unanimidade, ser inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, a disposição legislativa que definia o casamento como união entre pessoas de sexo diferente. Para chegar a esta conclusão, o Tribunal recorreu a um teste intermédio de fiscalização da constitucionalidade de uma medida legislativa à luz do princípio da igualdade. Este teste, usualmente designado «heightened scrutiny» e aplicado à apreciação das disposições legislativas que estabelecem diferenças entre homens e mulheres, tem na sua base a ideia de que as classificações legislativas em causa não constituem fundamento suficiente para o tratamento diferenciado. Nesta medida, os poderes públicos devem demonstrar que as disposições legislativas relevantes se encontram substancialmente relacionadas com um interesse legítimo do Estado. A decisão do Supremo Tribunal do Iowa analisa os diversos interesses e objectivos invocados para excluir a extensão do casamento civil às pessoas do mesmo sexo – isto é, a manutenção do casamento tradicional, a promoção do ambiente ideal para a criação dos filhos, a promoção da procriação, a promoção da estabilidade das relações entre casais heterossexuais e a conservação de recursos, quer dizer, o aumento de encargos financeiros assumidos pelo Estado em resultado de se aumentar o número de pessoas que podem casar – e considera que a prossecução de nenhum deles envolve substancialmente essa exclusão.

            No que em particular diz respeito à procriação, a decisão do Tribunal do Iowa, embora admitindo que o casamento heterossexual promova esse objectivo, sustenta que a verdadeira questão reside em saber se a exclusão dos indivíduos homossexuais da instituição do casamento civil tem como efeito uma maior procriação. Por outras palavras, se a procriação constitui o verdadeiro objectivo do casamento civil, então a diferenciação entre homossexuais e heterossexuais quanto ao casamento deve ser eficaz na prossecução do objectivo em causa. Considerando que as pessoas homossexuais são capazes de procriar, o único meio de a respectiva exclusão do casamento civil resultar num aumento da procriação consistiria em demonstrar que essa mesma exclusão poderia ter o efeito de «tornar» indivíduos homossexuais em heterossexuais tendo em vista a procriação no âmbito da actual instituição tradicional do casamento civil. Neste contexto, ainda que verdadeira, a ligação entre exclusão dos homossexuais do casamento e aumento da procriação é demasiado ténue para resistir ao teste do «heightened scrutiny».

            Também no decurso de 2009, os estados do Vermont, New Hampshire e Maine aprovaram legislação que estende o casamento civil às uniões entre duas pessoas do mesmo sexo.

 

            7.2  No Canadá, o Civil Marriage Act, de 20 Julho de 2005, reformulou a definição do casamento civil, que passou a ser «a união legítima de duas pessoas com a exclusão de quaisquer outras». Chegou assim ao seu termo um movimento de actividade judicial desenvolvido com base na Secção 15 da Carta de Direitos e Liberdades, adoptada em 1982, a que corresponde o seguinte texto: «Todo o indivíduo é igual perante e sob a lei e tem o direito à igual protecção e igual benefício da lei sem discriminação e, em particular, sem discriminação baseada na raça, origem nacional ou ética, cor, religião, sexo, idade e deficiência mental ou física». Logo em 1995, no caso Egan v. Canadá, o Supremo Tribunal do Canadá sustentou que a orientação sexual constituía um «fundamento análogo» àqueles que se encontram expressamente enunciados na Secção 15 da Carta.

            Posteriormente, em 1 de Maio de 2003, o Tribunal de Recurso da Colúmbia Britânica concluiu, no caso Barbeau v. British Columbia, que a «redefinição do casamento de modo a incluir casais do mesmo sexo (…) é a única via para a igualdade dos casais do mesmo sexo. Qualquer outra forma de reconhecimento de relações do mesmo sexo, incluindo a instituição paralela de uniões civis não corresponde a uma verdadeira igualdade. A este Tribunal não deve ser pedida uma solução que faça os casais do mesmo sexo “quase iguais” ou que deixe ao Governo a escolha entre soluções menos do que iguais». Pouco tempo depois, em 10 de Junho de 2003, o Tribunal de Recurso de Ontário chegou à mesma conclusão no caso Halpern v. Canadá. Simplesmente, em vez de suspender a sua decisão por um determinado período de tempo, de forma a permitir a actuação do legislador no sentido de estender o casamento aos homossexuais, o Tribunal reformulou directamente a definição de casamento e ordenou aos oficiais administrativos competentes a emissão de licenças de casamento aos casais do mesmo sexo a quem as mesmas tinham sido negadas no âmbito do processo em causa.

            Finalmente, o Governo solicitou ao Supremo Tribunal do Canadá a sua posição sobre a questão da extensão do casamento civil aos homossexuais, uma vez que em relação a essa questão já existiam decisões de tribunais provinciais, como as mencionadas, mas aquele Supremo Tribunal não se havia ainda pronunciado sobre a mesma. Através da decisão Reference re Same-Sex Marriage, de 9 de Dezembro de 2004, o Supremo Tribunal do Canadá considerou que a extensão do direito ao casamento civil às pessoas do mesmo sexo não só era consistente com a Secção 15 da Carta de Direitos e Liberdades, mas dela resultava directamente. Referindo-se ao caso Hyde v. Hyde, de 1866, segundo o qual o «casamento, como compreendido na Cristandade, pode para este efeito ser definido como a união voluntária para a vida de um homem e uma mulher, com a exclusão de todos os outros», o Tribunal afirmou: «A referência à “Cristandade” é reveladora. Hyde dirigia-se a uma sociedade de valores sociais partilhados em que se pensava que o casamento e a religião eram inseparáveis. Este já não é o caso. O Canadá é uma sociedade pluralista. O casamento, na perspectiva do Estado, é uma instituição civil. O raciocínio dos “conceitos petrificados” é contrário a um dos mais fundamentais princípios da interpretação constitucional canadiana: aquele segundo o qual a nossa Constituição é uma árvore viva que, através de uma interpretação progressiva, acomoda e se dirige às realidades da vida moderna».

 

            7.3. Entre 1998 e 2003, o Tribunal Constitucional da África do Sul aplicou os princípios constitucionais da igualdade e da não discriminação, em que se contém uma referência expressa à orientação sexual, eliminando ou alterando diversas normas que considerou serem discriminatórias contra homossexuais e casais de pessoas do mesmo sexo. O mesmo Tribunal Constitucional, no caso Minister of Home Affairs v. Fourie, de 1 de Dezembro de 2005, pronunciou-se sobre a questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Segundo o Tribunal, a exclusão das pessoas do mesmo sexo dos benefícios e responsabilidades do casamento não é «uma pequena e tangencial inconveniência decorrente de algumas relíquias de prejuízo social destinadas a evaporar como a neblina matinal. Representa uma afirmação severa, ainda que oblíqua, pelo Direito de que os casais do mesmo sexo são estranhos, e de que a sua necessidade de afirmação e protecção das suas relações íntimas enquanto seres humanos é de algum modo inferior às dos casais heterossexuais. Reforça a noção lesiva de que devem ser tratados como pecularidades biológicas, como seres humanos falhados ou caídos que não se ajustam à sociedade normal e, como tal, não suscitam a preocupação moral e respeito que a nossa Constituição procura assegurar a todos. Significa que a sua capacidade para o amor, compromisso e responsabilidade é, por definição, menos merecedora de respeito do que a dos casais heterossexuais».

            O Tribunal Constitucional sul-africano ocupa-se também da proposição segundo a qual, seja qual for o reconhecimento devido às pessoas do mesmo sexo que pretendem viver em comum, esse reconhecimento deve deixar intacto o casamento tradicional. Identifica, a este propósito, os seguintes argumentos: o argumento da procriação; a necessidade de respeitar as crenças religiosas de cada um; o reconhecimento dado pelo direito internacional ao casamento heterossexual; a necessidade de recorrer a diversos sistemas de direito da família contida na secção 15 da Constituição. O Tribunal considerou, em relação ao argumento segundo o qual o potencial procriativo caracteriza o casamento, que o mesmo, ainda que possa ser persuasivo no contexto de uma visão religiosa particular, não é uma característica definitória das relações conjugais, de um ponto de vista jurídico e constitucional. Segundo o Tribunal, «sustentar o contrário seria profundamente penalizador para os casais (casados ou não) que, por qualquer razão, são incapazes de procriar quando começam tal relação, ou se tornam incapazes em qualquer momento posterior. É igualmente penalizador para os casais que começam uma tal relação numa idade em que já não têm o desejo de relações sexuais ou a capacidade de conceber. É penalizador para os pais adoptivos sugerir que a sua família o é menos e menos merecedora de respeito e protecção do que uma família com filhos procriados. É até penalizador para um casal que voluntariamente decide não ter filhos ou relações sexuais, sendo esta uma decisão inteiramente contida na sua esfera protegida de liberdade e privacidade».

            Um outro argumento consiste em sustentar que alterar radicalmente uma instituição com um significado velho de séculos para muitas religiões constituiria uma violação da liberdade religiosa. Simplesmente, no entender do Tribunal, uma coisa «é reconhecer o importante papel que a religião ocupa na nossa vida pública. Coisa bem diversa é usar doutrinas religiosas como fonte para interpretar a Constituição». O reconhecimento pelo Estado «do direito dos casais do mesmo sexo a gozarem do mesmo estatuto, direitos e responsabilidades que o direito matrimonial atribui aos casais heterossexuais não é, de modo algum, inconsistente com os direitos das organizações religiosas de continuarem a recusar celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo».

            Segundo uma outra linha de argumentação, o direito internacional reconhece e protege apenas o casamento heterossexual. Assim, o artigo 16.º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, estabelece que «Os homens e as mulheres maiores de idade tem o direito de casar e constituir família, sem qualquer limitação com base na raça, nacionalidade ou religião». Segundo o Tribunal, «a referência a “homens e mulheres” é descritiva de uma realidade assumida, mais do que prescritiva de uma estrutura normativa para todos os tempos». Do mesmo modo, «a afirmação no artigo 16.º, n.º 3, da DUDH de que a família é a unidade natural e fundamental da sociedade, a que é devida protecção pelo Estado, não tem em si implicações inerentemente definitórias».

            O reconhecimento da diversidade de sistemas de direito pessoal e da família «sob qualquer tradição», decorrente da secção 15 da Constituição sul-africana, implicaria que é o poder legislativo, e não o judicial, o responsável pela criação de um regime adequado às necessidades dos casais de pessoas do mesmo sexo e que o estabelecimento de tal regime não deveria contender com a instituição do casamento. O Tribunal entendeu que a norma em causa, não sendo injuntiva, «certamente não se projecta como o único portal jurídico para o reconhecimento das uniões do mesmo sexo», para além da dificuldade de perspectivar a união entre pessoas do mesmo sexo à luz da categoria de sistema de direito da família «sob qualquer tradição».

            O Tribunal Constitucional sul-africano apreciou depois a questão de saber se existe alguma justificação nos termos da secção 36 da Constituição sul-africana (que desempenha sensivelmente a mesma função que o artigo 18.º da Constituição portuguesa) para a afectação dos direitos de igualdade e dignidade dos casais de pessoas do mesmo sexo. A este propósito  seria necessário considerar duas justificações: a inclusão dos casais do mesmo sexo minaria os fundamentos da instituição do casamento; uma tal inclusão seria intrusiva e ofensiva de fortes sensibilidades religiosas de certas secções do público. Em relação à primeira justificação, o Tribunal retoma uma linha de argumentação já trilhada no caso Goodridge: «permitir o acesso a casais do mesmo sexo não atenuaria de modo algum a capacidade dos casais heterossexuais para casar do modo que quisessem e de acordo com os princípios da sua religião». Quanto à segunda, sustenta que as crenças religiosas «não podem ser impostas através do direito do Estado no todo da sociedade, através de um modo que nega os direitos fundamentais daqueles que são negativamente afectados». Assim, o Tribunal conclui que a exclusão dos casais do mesmo sexo do estatuto, direitos e responsabilidades atribuídos aos casais heterossexuais através do casamento constitui uma violação injustificada dos princípios da igualdade e da dignidade humana.

            Tendo considerado que a definição de casamento da common law viola a Constituição sul-africana, o Tribunal ocupou-se da questão de saber se deveria ele próprio desenvolver a common law de forma a superar tal violação. Contra esta hipótese considerou três argumentos: deve ser dado tempo para que o público se envolva num assunto de tão grande interesse público e importância; não é da competência do Tribunal reestruturar a instituição do casamento de um modo tão radical; apenas o Parlamento tem a autoridade necessária para reformular o casamento. Admitindo a existência de diversas alternativas a considerar pelo legislador, desde a simples substituição das palavras «marido» e «mulher» pelas palavras «esposos» ou «pessoas» no texto da lei em vigor, até à previsão de diferentes actos matrimoniais, ao lado de um acto matrimonial de aplicação geral, para diferentes grupos como casais nos casamentos de direito costumeiro, casamentos islâmicos, casamentos hindus e também casamentos específicos para pessoas do mesmo sexo. De acordo com o Tribunal «dado o grande significado público da matéria, as profundas sensibilidades envolvidas e a importância de estabelecer uma fundação firme para alcançar a igualdade nesta área, é apropriado que à legislatura seja dada uma oportunidade para traçar aquele que considere ser o melhor caminho em frente». O Tribunal excluiu, no entanto, qualquer solução que «na aparência providenciasse igual protecção, mas apenas o fizesse de um modo que no seu contexto e aplicação fosse pensado para reproduzir novas formas de marginalização. Historicamente o conceito ‘separados mas iguais’ serviu como um disfarce muito usado para cobrir a aversão ou o repúdio daqueles que estavam no poder por aqueles que eram sujeitos à segregação». Neste contexto, o tribunal suspendeu durante um ano a declaração de invalidade da definição de casamento da common law, tendo em vista permitir ao Parlamento a correcção do defeito. Findo esse período, e em caso de inacção do Parlamento, o Tribunal determinou que a lei respeitante ao casamento passaria a conter a expressão «esposo» na fórmula do casamento. Segundo o Tribunal, uma tal solução «tem a vantagem de ser simples e directa. Envolve uma alteração textual mínima. Os valores da Constituição seriam mantidos. As implicações orçamentais seriam mínimas. A política constante do direito no sentido de proteger e promover a vida familiar seria sustentada e alargada. Os estereótipos negativos seriam debilitados. As instituições religiosas permaneceriam imperturbadas quanto à sua capacidade de levar a cabo cerimónias matrimoniais de acordo com os seus princípios e, se assim o entenderem, de apenas celebrar casamentos heterossexuais. O princípio da acomodação razoável poderia ser aplicado pelo Estado no sentido de assegurar que os oficiais do casamento civil com objecções religiosas sinceras em relação à celebração de casamentos entre pessoas do mesmo sexo não seriam obrigados a fazê-lo se isso implicasse uma violação da sua consciência. Se o Parlamento desejar redefinir ou substituir esta solução por qualquer outra que satisfaça as exigências constitucionais, poderá sempre ter a última palavra».

            Em 2006 foi aprovada Lei relativa às Uniões Civis (Civil Union Act), passando a existir três regimes jurídicos respeitantes ao casamento: a Lei do Casamento, de 1961 (Marriage Act), a lei dos casamentos costumeiros, de 1998 (Customary Marriage Act), relativa ao reconhecimento dos casamentos celebrados segundo os ritos das tribos indígenas, e a mencionada lei das uniões civis. Os sul-africanos podem escolher casar segundo um qualquer destes regimes, mas apenas podem ser casados segundo um deles num mesmo momento. Duas pessoas do mesmo sexo podem apenas casar-se segundo a Lei das Uniões Civis, podendo escolher se a união entre elas se designa como uma união civil ou um casamento. Em qualquer caso as uniões terão as mesmas consequências que o casamento celebrado nos termos do Marriage Act, com as adaptações que se mostrem necessárias.

 

            8. No continente europeu, foram muito diversos os caminhos trilhados na matéria que nos ocupa. Aqui, tem sido o legislador a intervir no reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo. Em alguns países, tal intervenção consistiu na própria redefinição do casamento, de modo a abranger as uniões de pessoas do mesmo sexo, como sucedeu na Holanda, em 2001, na Bélgica, em 2003, na Espanha, em 2005 e, recentemente, na Noruega e na Suécia. Noutros    casos, a intervenção do legislador passou pela consagração de uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, ou parcerias de vida registada, envolvendo o reconhecimento de grande parte dos direitos e deveres do casamento. O primeiro país a consagrar uma união civil entre pessoas do mesmo sexo, com efeitos análogos aos do casamento, foi a Dinamarca, em 1989. Seguiram-se a Noruega (em 1993), a Suécia (em 1994), a Islândia (em 1996), a Alemanha (em 2001), a Finlândia (em 2001), e o Reino Unido (em 2004) (cfr. “Casamento e Outras Formas de Vida em Comum entre Pessoas do mesmo Sexo”, Relatório elaborado pela Divisão de Informação Legislativa da Assembleia da República em Maio de 2007, in Julgar, n.º 4, 2008, págs. 223 e seguintes).

            Nos termos do artigo 12.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 4 de Abril de 1950, «A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de se casar e de constituir família, segundo as leis nacionais que regem o exercício deste direito». Em matéria de igualdade, estabelece o artigo 14.º da Convenção que «O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação». Por seu turno, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 7 de Dezembro de 2000, estabelece, no seu artigo 9.º, «O direito de contrair casamento e o direito de constituir família são garantidos pelas legislações nacionais que regem o respectivo exercício». Para além disso, o artigo 21.º, n.º 1, proíbe toda a «discriminação em razão, designadamente, do sexo, raça, cor ou origem étnica ou social, características genéticas, língua, religião ou convicções, opiniões políticas ou outras, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento, deficiência, idade ou orientação sexual».

            O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem teve oportunidade de se pronunciar, por diversas vezes, sobre o casamento. Assim, no caso Rees c. Reino Unido, de 10 de Outubro de 1986, o Tribunal afirmou que «ao garantir o direito de se casar, o artigo 12.º [da CEDH] tem em vista o casamento entre duas pessoas de sexo biológico diferente. O seu teor confirma-o: resulta deste artigo que o seu objectivo consiste essencialmente em proteger o casamento enquanto fundamento da família» (cfr. § 49). Este entendimento viria a ser confirmado nos casos Cossey c. Reino Unido, de 27 de Setembro de 1990 (cfr. § 43), e Sheffield e Horsham c. Reino Unido, de 30 de Julho de 1998 (cfr. § 60).

            Esta jurisprudência conheceu posteriormente um distinguo, em matéria de transexualidade, sobre que se haviam debruçado os casos Rees, Cossey e Sheffield e Horsham, com o caso Christine Goodwin c. Reino Unido, de 11 de Julho de 2002. Nesta decisão, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem abandonou a referência à diferença de sexo biológico para definir o casamento, afirmando o seguinte: «Reexaminando a situação em 2002, o Tribunal que pelo artigo 12.º se encontra garantido o direito fundamental, para um homem e uma mulher, de se casar de fundar uma família. Todavia, o segundo aspecto não é uma condição do primeiro, e a incapacidade de um casal conceber ou criar uma criança não seria em si suficiente para o privar do direito visado pela primeira parte da disposição em causa» (cfr. § 98). O Tribunal afirmou ainda que «desde a adopção da Convenção, a instituição do casamento foi profundamente afectada pela evolução da sociedade, e os progressos da medicina e da ciência levaram a mudanças radicais no domínio da transexualidade. (…) Outros factores devem ser tidos em conta: o reconhecimento pela comunidade médica e as autoridades sanitárias nos Estados contratantes do estado médico de perturbação da identidade sexual, a disponibilização de tratamentos, incluindo intervenções cirúrgicas, destinadas a permitir à pessoa em causa de se aproximar tanto quanto possível do sexo a que tem o sentimento de pertencer, a adopção por esta do papel social do seu novo sexo. O Tribunal nota igualmente que o texto do artigo 9.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia adoptada recentemente se afasta – e isso não pode deixar de ter sido deliberado – do texto do artigo 12.º da Convenção, na medida em que exclui a referência ao homem e à mulher» (cfr. § 100).

            Por outro lado, na decisão de rejeição de 10 de Maio de 2001, proferida no caso Mata Estevez c. Espanha, o Tribunal afirmou que «de acordo com a jurisprudência constante dos órgãos da Convenção, as relações homossexuais duradouras entre dois homens não relevam do direito ao respeito da vida familiar protegida pelo artigo 8.º da Convenção (cfr., n.° 9369/81, dec. 3.5.1983, DR 32, p. 220 ; n.° 11716/85, dec. 14.5.1986, DR 47, p. 274). O Tribunal considera que apesar da evolução verificada em diversos Estados europeus tendendo ao reconhecimento legal e jurídico das uniões de facto estáveis entre homossexuais, trata-se de um domínio em que os Estados contratantes, na ausência de um denominador comum amplamente partilhado, gozam ainda de uma ampla margem de apreciação (cfr., mutatis mutandis, os casos Cossey c. Reino Unido, de 27 de Setembro de 1990, série n.° 184, p. 16, § 40 e, a contrario, Smyth e Grady c. Reino Unido, n.°s 33985/96 e 33986/96, § 104, CEDH 1999-VI). Em consequência, a ligação do requerente com o seu parceiro, hoje falecido, não releva do artigo 8.º na medida em que esta disposição protege o direito ao respeito da vida familiar». No caso Karner c. Austria, de 24 de Julho de 2003, o Tribunal entendeu «o objectivo consistente em proteger a família no sentido tradicional do termo é suficientemente abstracto e uma grande variedade de medidas concretas pode ser utilizada para o realizar. Quando a margem de apreciação deixada aos Estados é estreita, por exemplo no caso de uma diferença de tratamento fundada no sexo ou na orientação sexual, não só o princípio da proporcionalidade exige que a medida adoptada seja normalmente de natureza a permitir a realização do objectivo pretendido, mas obriga também a demonstrar que era necessário, para atingir tal fim, excluir certas pessoas – no caso os indivíduos vivendo uma relação homossexual – do campo de aplicação da medida em causa – o artigo 14.º da lei sobre os arrendamentos. O Tribunal verifica que o Governo não apresentou argumentos que permitissem chegar a uma tal conclusão» (cfr. § 41).

            Entendimento algo diverso foi o adoptado pela Comissão Europeia dos Direitos do Homem. Assim, no Relatório da Comissão, adoptado, em 1 de Março de 1979, no caso Van Oosterwijck c. Bélgica (Proc. n.º 7654/76), afirmou-se que «O Governo fez valer, é certo, que as operações a que o requerente [transexual] se submeteu o privaram da faculdade de procriar; este ter-se-ia assim colocado, ele mesmo, na impossibilidade de exercer o seu direito de fundar uma família, indissoluvelmente ligado pelo artigo 12.º [da Convenção] ao direito de se casar». Em relação a este argumento, a Comissão sustentou que «se o casamento e a família estão efectivamente associados na Convenção, como nos direitos nacionais, nada permite todavia daí deduzir que a capacidade de procriar seria uma condição fundamental do casamento, nem mesmo que a procriação seja um fim essencial do mesmo». Para além de que uma família «pode sempre ser fundada pela adopção de crianças, convém observar a este propósito que se a impotência é por vezes considerada como uma causa de nulidade do casamento, assim não acontece geralmente com a esterilidade» (cfr. § 59). Ao mesmo tempo, a Comissão, em alguns casos em que sustentou a possibilidade de um preso exercer o direito de se casar, mesmo em caso de prisão perpétua, dissociou esse direito não só da capacidade física de procriar, mas da própria possibilidade de ter relações sexuais (cfr. caso Hamer c. Reino Unido, relatório da Comissão de 13 de Outubro de 1977, Proc. n.º 7114/75; caso Draper c. Reino Unido, relatório da Comissão de 10 de Julho de 1980, Proc. n.º 81/86/78). Todavia, no caso C. e L. M. c. Reino Unido (Proc. n.º 14753/89), decidido em 9 de Outubro de 1989, a Comissão entendeu que «uma relação de lésbicas envolve a vida privada no sentido do artigo 8.º da Convenção. No entanto, muito embora a deportação tenha repercussões em tais relações, não pode, em princípio, ser encarada como uma interferência nesta disposição da Convenção, atendendo ao direito do Estado de impor limites e controlos de imigração». Nesta conformidade, «as regras de imigração em questão dão prioridade e melhores garantias às famílias estabelecidas tradicionais, mais do que a outras relações estabelecidas como uma união lésbica.  A Comissão não encontra elementos de discriminação, contrários ao artigo 14.º da Convenção, numa tal política, atendendo à especial protecção atribuída à família tradicional». Finalmente, a Comissão, invocando o caso Rees, sustentou que uma relação lésbica não dá lugar, para as pessoas que a mantêm, a um direito de se casar e fundar uma família, no sentido do artigo 12.º da Convenção.

            O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, no acórdão de 17 de Fevereiro de 1998 (proferido no processo n.º C-249/96, Lisa Jacqueline Grant contra South-West Trains Ltd.), considerou que «a recusa de uma entidade patronal de conceder uma redução no preço dos transportes a favor da pessoa, do mesmo sexo, com a qual o trabalhador mantém uma relação estável, quando essa redução é concedida a favor do cônjuge do trabalhador ou à pessoa, do sexo oposto, com qual este mantém uma relação estável sem ser casado, não constitui uma discriminação proibida pelo artigo 119.º do Tratado nem pela Directiva 75/117». O Tribunal considerou que «no seu estado actual, o direito comunitário não abrange uma discriminação baseada na orientação sexual, como a que constitui objecto do litígio no processo principal», mas admitiu que após a entrada em vigor do Tratado de Amesterdão será possível ao Conselho, nas condições previstas no artigo 6.º-A do Tratado CE, a adopção das medidas necessárias à eliminação de diferentes formas de discriminação, nomeadamente as baseadas na orientação sexual. Mais tarde, o Tribunal de Justiça, através do seu acórdão de 31 de Maio de 2001 (proferido nos processos apensos C-122/99 P e C-125/99 P; Reino da Suécia e outros contra Conselho da União Europeia), apreciou a questão de saber se a decisão privando um funcionário sueco de um abono a que tinham direito os seus colegas casados, com fundamento apenas na circunstância de o parceiro com quem vive ser do mesmo sexo, constitui uma discriminação em razão do sexo contrária ao artigo 119.º do Tratado. Segundo o Tribunal, «o princípio da igualdade de tratamento só pode aplicar-se a pessoas que estejam em situações comparáveis, e importa, portanto, examinar se a situação de um funcionário que registou uma união de facto entre pessoas do mesmo sexo, como a união de facto de direito sueco contraída pelo recorrente, é comparável à de um funcionário casado». Para proceder a tal análise, o Tribunal considerou que, enquanto «órgão jurisdicional comunitário», não podia abstrair «das concepções dominantes no conjunto da Comunidade». Considerando a grande heterogeneidade das legislações e a falta de equiparação geral do casamento às outras formas de união legal, o Tribunal «considerou que o fundamento relativo à violação da igualdade de tratamento e a uma discriminação em razão do sexo não pode ser acolhido».

            Merece ainda destaque a decisão do Tribunal Constitucional alemão de 17 de Julho de 2002, relativa à constitucionalidade da lei sobre as parcerias de vida, que entrou em vigor em 1 de Agosto de 2001. A diferença de perspectiva em relação às decisões judiciais adoptadas no Canadá, nos Estados do Massachusetts e Califórnia, e na África do Sul, reside desde logo na circunstância de se poder afirmar que a criação de um instituto autónomo em relação ao casamento se deve compreender num horizonte em que o legislador se considerou impedido pela Lei Fundamental alemã de estender o casamento às uniões entre pessoas do mesmo sexo [neste sentido, cfr. Dieter Schwab, “Eingetragene Lebenspartnerschaft – Ein Überblick”, in idem (ed.), Die eingetragene Lebenspartnerschaft, Bielefeld, 2002, pág. 148]. As razões de um tal impedimento prendem-se, segundo o Tribunal Constitucional alemão, com a especial protecção que a Lei Fundamental confere ao casamento. Segundo o Tribunal, «a Lei Fundamental não contém em si mesma nenhuma definição do casamento, mas pressupõe-no enquanto forma especial de vida humana em comum. A realização da protecção jurídico-constitucional necessita, nessa medida, de um regime jurídico que conforme e delimite a comunhão de vida que goza da protecção da Constituição enquanto casamento. O legislador tem uma considerável margem de configuração quanto a determinar a forma e o conteúdo do casamento (…). A Lei Fundamental não garante o instituto do casamento em abstracto, mas na configuração que lhe corresponde na visão dominante que obteve expressão no regime legal (…). De todo o modo, deve o legislador ter em consideração, ao configurar o casamento, os princípios estruturais que resultam, a partir do artigo 6.º, n.º 1, da Lei Fundamental [de acordo com o qual «o casamento e a família encontram-se sob a especial protecção da ordem do Estado»], na forma de vida encontrada em conexão com o carácter de liberdade dos direitos fundamentais garantidos e outras normas constitucionais (…). Faz parte da substância do casamento, tal como este é protegido, independentemente da evolução social e das transformações daí advenientes, e foi cunhado na Lei Fundamental, a sua definição como a união entre um homem e uma mulher numa comunhão de vida duradoura, fundada numa livre decisão com a colaboração do Estado (…), em que ao homem e à mulher pertencem os mesmos direitos e em que podem decidir livremente sobre a conformação da sua vida em comum» (§ 87). Ao mesmo tempo, afirma-se na mesma decisão que da especial protecção atribuída ao casamento pela Constituição não se pode inferir que o casamento seja sempre de proteger em maior medida que outras formas de vida em comum (§ 99). Daí resultaria a admissibilidade do instituto da parceria de vida entre pessoas do mesmo sexo.

            O Tribunal Constitucional alemão entendeu ainda não se verificar uma violação do princípio da igualdade pela circunstância de as pessoas homossexuais apenas poderem aceder às parcerias de vida, permanecendo o casamento destinado aos heterossexuais. Segundo o Tribunal, a lei, ao prever uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, «não associa direitos e obrigações ao sexo de uma pessoa, mas antes associa à combinação de sexos uma ligação pessoal que lhe concede o acesso à parceria de vida. É às pessoas assim unidas que a lei atribui direitos e deveres. Tal como o casamento, com a sua limitação a pessoas de sexo diferente, não discrimina os casais homossexuais em razão da sua orientação sexual, também as uniões homossexuais não discriminam os casais heterossexuais em razão da sua orientação. Mulheres e homens podem casar com uma pessoa de sexo diferente, mas não com uma pessoa do mesmo sexo; qualquer um pode entrar numa união civil com uma pessoa do mesmo sexo, mas não com uma pessoa de sexo diferente» (cfr. § 106). A diferença que permite distinguir deste modo as pessoas homossexuais e as heterossexuais, quanto aos vínculos jurídicos que queiram dar às comunhões de vida entre si, é a seguinte: «A diferença, consistente em de uma relação de um homem e de uma mulher unidos por muito tempo poderem resultar filhos em comum, o que não pode acontecer numa união de pessoas do mesmo sexo, justifica que os pares de pessoas de sexo diferente sejam remetidos para o casamento, quando queiram dar à sua comunhão de vida um vínculo jurídico duradouro» (cfr. § 109).

 

9. Já acima se afirmou que o objecto do presente do recurso consiste na norma do artigo 1577º do Código Civil, que determina que o casamento deva ser celebrado “entre pessoas de sexo diferente”; para as recorrentes, a norma, na medida em que proíbe a celebração do casamento entre pessoas do mesmo sexo, é inconstitucional.

            Este pedido merece atenção; na verdade, é bem certo que as recorrentes não acusam a norma que permite a celebração de casamento às pessoas de sexo diferente de ser contrária à Constituição; o que sustentam é que também deveria ser permitida a celebração de casamento às pessoas do mesmo sexo, retirando essa injunção directamente da Constituição. Ou seja, no entender das recorrentes, estar-se-ia perante a falta de uma norma necessária para dar execução a uma determinação constitucional. Simplesmente, a enunciação da questão nestes termos identifica imediatamente uma questão de inconstitucionalidade por omissão, para cuja suscitação a própria Constituição exige poderes que não confere aos particulares (artigo 283.º n.º 1).

            No entanto, é fora de dúvida que o Tribunal não pode negar às recorrentes a análise do seu recurso, pois a norma impugnada foi efectivamente aplicada na decisão recorrida com um sentido que têm por inconstitucional. Mas é útil sublinhar – para que se tornem bem perceptíveis os limites da pronúncia do Tribunal – que o pedido, que apresenta uma estrutura próxima da invocação de uma inconstitucionalidade por omissão, se mostra disciplinado, como já se viu, pela alínea b) do n.º 1 do artigo 280º da Constituição e pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC e que, por isso, se circunscreve necessariamente à norma efectivamente aplicada com um sentido alegadamente inconstitucional. Por esta razão, é absolutamente certo que se mostra vedado ao Tribunal, no âmbito do presente recurso, não só aditar normas necessárias à execução de um hipotético julgamento de procedência do pedido, mas também avaliar a conformidade legal de outras normas decorrentes da disciplina legal do casamento, como as relativas aos seus efeitos, que manifestamente não foram aplicadas na decisão recorrida.

 

            10. Importa fazer notar, na sequência do que já se disse, que a questão que, no âmbito do presente recurso, se coloca ao Tribunal não reside em saber se a Constituição permite o estabelecimento de um regime de casamento homossexual. A questão é mais acutilante, pois consiste em saber se é constitucionalmente imposta, como pretendem as recorrentes, a configuração do casamento de forma a abranger uniões entre pessoas do mesmo sexo.

Diz o artigo 36º da Constituição:

 

Artigo 36º

(Família, casamento e filiação)

 

1. Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade.

2. A lei regula os requisitos e os efeitos do casamento e da sua dissolução, por morte ou divórcio, independentemente da forma de celebração.

3. Os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade civil e política e à manutenção e educação dos filhos.

4. Os filhos nascidos fora do casamento não podem, por esse motivo, ser objecto de qualquer discriminação e a lei ou as repartições oficiais não podem usar designações discriminatórias relativas à filiação.

5. Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos.

6. Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.

7. A adopção é regulada e protegida nos termos da lei, a qual deve estabelecer formas céleres para a respectiva tramitação.

 

São especialmente relevantes, para o caso em presença, os n.ºs 1 e 2 do preceito, cuja redacção permanece inalterada desde o texto originário da Constituição de 1976. E é inevitável ter em linha de conta que, no momento histórico em que a Constituição foi escrita e começou a vigorar, entregando a disciplina dos “requisitos” e efeitos do casamento ao legislador ordinário, o Código Civil já dispunha, no seu artigo 1577.º, que o “casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente”. Com ligeiras alterações, a actual redacção do aludido preceito foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 496/77 de 25 de Novembro, diploma que, aliás, foi aprovado com o declarado propósito de “compatibilizar” o Código Civil com a Constituição.

Não é possível deixar de extrair relevância interpretativa a esta circunstância.

Na verdade, se o legislador constitucional pretendesse introduzir uma alteração da configuração legal do casamento, impondo ao legislador ordinário a obrigação de legislar no sentido de passar a ser permitido a sua celebração por pessoas do mesmo sexo, certamente que o teria afirmado explicitamente, sem se limitar a legitimar o conceito configurado pela lei civil; e não lhe faltaram ocasiões para esse efeito, ao longo das revisões constitucionais subsequentes. Aliás, as recorrentes salientam com especial ênfase a alteração introduzida no n.º 2 do artigo 13º da Constituição pela sexta revisão constitucional, que proibiu expressamente a discriminação em função da “orientação sexual”, a par de outras razões, como ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica e condição social. Mas a verdade é que aditar a orientação sexual à lista das circunstâncias por força das quais “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever”, em homenagem ao princípio da igualdade, significa, tão-somente, que a ordem jurídica é alheia à orientação sexual dos indivíduos.

De resto, o argumento invocado prova demais, na perspectiva da tese das recorrentes; com efeito, fica totalmente por explicar a razão pela qual o legislador constitucional não completou a suposta imposição do casamento homossexual, aditando ao artigo 36º da Constituição uma determinação nesse sentido, pois não é legítimo pensar – precisamente por força da alteração ao n.º 2 do artigo 13º – que tivesse admitido ser desnecessária uma referência normativa expressa com esse objectivo.

As recorrentes afirmam um entendimento segundo o qual a extensão do casamento às pessoas do mesmo sexo não envolveria uma redefinição da ordem jurídica, mas tão só a remoção da sua restrição, inadmissível à luz do princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, a pessoas de sexo diferente, como resulta das normas impugnadas. Mas a circunstância de a Constituição, no já citado n.º 1 do seu artigo 36.º, se referir expressamente ao casamento sem o definir, revela que não pretende pôr em causa o conceito comum, radicado na comunidade e recebido na lei civil, configurado como um «contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente». Neste sentido aponta, como se disse, o n.º 2 do mesmo artigo 36.º, ao estabelecer que «a lei regula os requisitos e os efeitos do casamento» (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição, Coimbra, 2007, pág. 362).  Com efeito, em anotação ao artigo 36º, os citados Autores afirmam:

 

[…] Todavia, o alargamento do âmbito de protecção do preceito à realidade de comunidades familiares diversas e plurais não se transfere de plano para o casamento de pessoas do mesmo sexo. Seguramente que basta o princípio do Estado de direito democrático e o princípio da liberdade e autonomia pessoal, a proibição de discriminação em razão da orientação homossexual, o direito ao desenvolvimento da personalidade, que lhe vai naturalmente associado, para garantir o direito individual de cada pessoa a estabelecer vida em comum com qualquer parceiro da sua escolha (cfr. anotação ao art. 13.º) (embora sempre com a limitação dos impedimentos impedientes do casamento em sentido restrito, o que leva a proibir, como é óbvio, uniões homossexuais de irmãs, irmãos, mães-filhos, pais-filhos etc. e de pessoas sem idade nupcial). Mas a recepção constitucional do conceito histórico de casamento como união entre duas pessoas de sexo diferente radicado intersubjectivamente na comunidade como instituição não permite retirar da Constituição um reconhecimento directo e obrigatório dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo (como querem alguns a partir da nova redacção do art. 13.º-2), sem todavia proibir necessariamente o legislador de proceder ao seu reconhecimento ou à sua equiparação aos casamentos (como querem outros).

 

Por sua vez, Jorge Miranda e Rui Medeiros, na Constituição Portuguesa Anotada, anotam ao aludido artigo 36º o seguinte:

 

[…] Por um lado, a Constituição não consagra um direito dos homossexuais a contraírem casamento. Pelo contrário, como foi assinalado mais atrás, a Constituição impõe que sejam respeitados pelo legislador os princípios estruturantes do casamento na ordem jurídica portuguesa e, entre estes princípios, dificilmente se pode deixar de encontrar a exigência da diferença de sexo entre os dois cônjuges. Da mesma forma, no que toca à adopção, e uma vez que a Constituição defere para a lei a sua regulação e protecção, nada obsta a que o legislador ordinário, com a sua legitimidade democrática, exclua a adopção por casais homossexuais, tanto mais que, no espaço de discussão pública, é controverso em que medida o interesse superior da criança se compadece com a admissibilidade da adopção nesses casos e, parafraseando o Acórdão n.º 105/90, a abertura da Constituição não pode deixar de valer “quando na comunidade jurídica tenham curso perspectivas diferenciadas e pontos de vista díspares e não coincidentes sobre as decorrências ou implicações que dum princípio «aberto» da Constituição devem retirar-se para determinado domínio ou para a solução de determinado problema jurídico. Nessa situação sobretudo – em que haja de reconhecer-se e admitir-se como legítimo, na comunidade jurídica, um «pluralismo» mundividencial ou de concepções – sem dúvida cumprirá ao legislador (ao legislador democrático) optar e decidir”.

 

No tratamento da questão de saber se o direito de contrair casamento previsto na Constituição deve ser estendido ao casamento entre pessoas homossexuais devem, pois, ser excluídos quer o entendimento segundo o qual essa extensão não envolveria uma redefinição judicial do casamento, quer o entendimento segundo o qual o casamento objecto de tutela constitucional envolve uma petrificação do casamento tal como este é hoje definido na lei civil, excluindo o reconhecimento jurídico de outras comunhões de vida entre pessoas com efeitos análogos aos do casamento.

            As considerações que antecedem não devem ser entendidas como envolvendo a aceitação de que o casamento reveste, no artigo 36.º da Constituição, o alcance de uma garantia, no sentido de que a norma constitucional apenas se teria limitado a receber no seu seio, definitivamente, o conceito de casamento vigente em dado momento na lei civil. Não é possível conceber as garantias institucionais deste modo, tomando como parâmetro de aferição da tutela constitucional não a Constituição, mas a lei ordinária. Com efeito, não se aceita o entendimento segundo o qual o casamento objecto de tutela constitucional envolve uma petrificação do casamento tal como este é hoje definido na lei civil, excluindo o reconhecimento jurídico de outras comunhões de vida entre pessoas.

 

            11. Recorde-se o que, quanto ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, o Tribunal afirmou no Acórdão n.º 105/90 (www.tribunalconstitucional.pt):

 

«[…] se o conteúdo da ideia de dignidade da pessoa humana é algo que necessariamente tem de concretizar-se histórico-culturalmente, já se vê que no Estado moderno — e para além das projecções dessa ideia que encontrem logo tradução ao nível constitucional em princípios específicos da lei fundamental (maxime, os relativos ao reconhecimento e consagração dos direitos fundamentais) — há-de caber primacialmente ao legislador essa concretização: especialmente vocacionado, no quadro dos diferentes órgãos de soberania, para a “criação” e a “dinamização” da ordem jurídica, e democraticamente legitimado para tanto, é ao legislador que fica, por isso, con­fiada, em primeira linha, a tarefa ou o encargo de, em cada momento histórico, “ler”, traduzir e verter no correspondente ordenamento aquilo que nesse momento são as decorrências, implicações ou exigências dos princípios “abertos” da Constituição (tal como, justamente, o princípio da “dignidade da pessoa humana”).  E daí que — indo agora ao ponto — no controlo jurisdicional da constitucionalidade das soluções jurídico-normativas a que o legislador tenha, desse modo, chegado (no controlo, afinal, do modo como o legislador preencheu o espaço que a Constituição lhe deixou, precisamente a ele, para preencher) haja de operar-se com uma particular cautela e contenção.  Decerto, assim, que só onde ocorrer uma real e inequívoca incompatibilidade de tais soluções com o princípio regulativo constitucional que esteja em causa — real e inequívoca, não segundo o critério subjectivo do juiz, mas segundo um critério objectivo, como o será, p. ex. (e para usar aqui uma fórmula doutrinária expressiva), o de «todos os que pensam recta e justamente» —, só então, quando for indiscutível que o legislador, afinal, não “concretizou”, e antes “subverteu”, a matriz axiológica constitucional por onde devia orientar-se, será lícito aos tribunais (e ao Tribunal Constitucional em particular) concluir pela inconstitucionalidade das mesmas soluções.

E, se estas considerações são em geral pertinentes, mais o serão ainda quando na comunidade jurídica tenham curso perspectivas diferenciadas e pontos de vista díspares e não coincidentes sobre as decorrências ou implicações que dum princípio «aberto» da Constituição devem retirar-se para determinado domínio ou para a solução de determinado problema jurídico.  Nessa situação sobretudo — em que haja de reconhecer-se e admitir-se como legítimo, na comunidade jurídica, um “pluralismo” mundividencial ou de concepções — sem dúvida cumprirá ao legislador (ao legislador democrático) optar e decidir.»

           

O entendimento que o Acórdão citado exprime é inteiramente procedente no presente caso.

 

12. Cabe fazer notar que as ordens jurídicas onde se procedeu a uma redefinição judicial do casamento não continham nas respectivas Constituições normas equivalentes aos artigos 36.º e 67.º da Constituição portuguesa. Aliás, aquelas ordens jurídicas, todas elas de raiz anglo-saxónica, têm um carácter próprio que não é coincidente com a tradição radicada na Declaração de Direitos francesa de 1789; as constituições continentais visam essencialmente configurar a conduta do Estado face aos princípios democráticos e ao primado da lei, ao passo que as constituições que assumem a tradição do Bill of Rights britânico, ou, mais precisamente, da Declaração de Direitos de Virgínia de Junho de 1776, acentuam a necessidade de limitar o poder do governo, isto é, do poder legislativo, conferindo aos indivíduos o poder de intentar, junto de um tribunal independente, as acções necessárias à defesa dos seus direitos, sempre que sintam que estão a ser ameaçados ou restringidos. Em qualquer caso, a história do constitucionalismo é marcada pela progressiva constitucionalização dos direitos humanos e pode reconhecer-se a evolução do pensamento maioritariamente assumido pela comunidade pelo longo caminho já percorrido desde que um direito que hoje é tão radicalmente reivindicado como absoluto e essencial, como o direito de voto, estava reservado a cidadãos adultos, masculinos e proprietários. Mas, na sua essência, a incorporação constitucional desses direitos assenta na preocupação da sua catalogação e não na vontade do seu alargamento mediante uma evolução comandada por um tribunal. A consequência nuclear da inevitável aceitação da soberania popular, a par da consagração do sistema de separação de poderes, implica não só o acatamento das decisões proferidas por órgãos imparciais e independentes, como são os tribunais, mas também a aceitação de que a reforma da ordem jurídica cabe a órgãos de representação estrita da vontade popular, investidos no poder de fazer opções de natureza político-legislativa.

As decisões dos tribunais supremos do Canadá, do Massachusetts, da Califórnia e da África do Sul, atrás mencionadas, ao reconhecerem um direito constitucional das pessoas homossexuais a casar entre si, admitiram proceder a uma profunda alteração do sentido do casamento no direito vigente naqueles ordenamentos, embora hajam simultaneamente considerado não estarem a afectar o valor fundamental do casamento nas respectivas sociedades. Para o efeito, entenderam que o casamento não tem qualquer conexão necessária com a procriação e ainda que a extensão do casamento às pessoas homossexuais não afecta de modo algum a possibilidade de os casais heterossexuais, se assim o quiserem, continuarem a entender o casamento como um meio de promover a procriação. Dito de outro modo, uma definição mais ampla do casamento, de modo a abranger as pessoas homossexuais, continuaria a permitir, àqueles que subscrevem uma concepção tradicional do casamento, uma relação conjugal estruturada sobre esses mesmos valores. Mas este modo de ver, para além de significar, em si mesmo, a admissão da oposição entre uma concepção «tradicional» do casamento e uma concepção «abrangente» que se lhe opõe e só no âmbito da qual é possível a extensão do direito de contrair casamento aos homossexuais, significa também a negação que, mesmo no plano institucional, exista uma qualquer conexão entre casamento e a criação e educação dos filhos pelos seus pais biológicos.

Não está em causa, evidentemente, negar que os efeitos jurídicos do casamento não pressupõem a possibilidade, ou sequer a vontade, de procriar. Seria, com efeito, estranho, e certamente inaceitável à luz da Constituição, que o estabelecimento de uma qualquer conexão entre o casamento e a procriação passasse pela imposição desta última aos cônjuges. Simplesmente, não é forçoso reduzir o casamento aos seus efeitos, e a Constituição distingue claramente, no artigo 36.º, n.º 2, os requisitos e os efeitos do casamento. A conexão que é possível estabelecer, com sentido, entre casamento e procriação opera ao nível da consideração daquele como instituição social através da qual o Estado recorre ao potencial do direito para difundir determinados valores na sociedade, no caso os valores segundo os quais o casamento, por um lado, constitui um meio específico de envolver uma geração na criação da que se lhe segue e o único desses meios que assegura a uma criança o direito de conhecer e ser educada pelos seus pais biológicos. Ora, parece claro que a redefinição do casamento como união entre duas pessoas, independentemente do respectivo sexo, torna impossível este quadro de referências. Em face da definição de casamento em vigor é ainda possível encarar este último como uma união completa entre um homem e uma mulher orientada para a educação conjunta dos filhos que possam ter; a definição do casamento pretendida pelas recorrentes encara-a como uma relação privada entre duas pessoas adultas que visa essencialmente satisfazer as necessidades próprias. Só assim se explica, aliás, que as recorrentes tenham chegado a enquadrar a sua pretensão à luz do princípio da liberdade contratual, previsto no artigo 405.º do Código Civil. Ora, não parece que a opção entre uma das duas concepções do casamento seja matéria da competência deste Tribunal, ao qual cumprirá apenas averiguar em que medida o legislador, ao efectuar essa opção, cumpre o disposto na Constituição.

 

13. Se é necessário admitir que a pretensão das recorrentes envolve, segundo uma certa perspectiva das coisas, que não é possível arredar por completo, uma profunda revisão do conceito de casamento em vigor na lei civil, isso não significa admitir também que esse conceito se impõe, sem mais, no próprio plano do direito constitucional. Como anteriormente se disse, uma tal admissão só poderia fazer-se nos quadros de um entendimento da categoria das garantias institucionais que deve ter-se por inadequado. De modo diferente, o sentido útil que poderia retirar-se da figura da garantia institucional seria o de obrigar o legislador a criar regras assegurando, para as uniões entre pessoas do mesmo sexo, um conteúdo funcional equivalente ao casamento. Simplesmente, nada impõe que essas regras envolvam uma extensão pura e simples do instituto do casamento às pessoas do mesmo sexo. A conclusão contrária pressuporia que previamente o legislador – e não, certamente, como se disse, este Tribunal – optasse claramente por uma concepção do casamento como simples relação privada. Só em tal contexto o princípio da igualdade tornaria constitucionalmente ilegítima uma restrição do casamento aos casais heterossexuais. Tal opção não é, no entanto, a subjacente ao actual quadro legislativo. Em suma, e como afirmam a este propósito Gomes Canotilho e Vital Moreira, «a recepção constitucional do conceito histórico de casamento como união entre duas pessoas de sexo diferente não permite retirar da Constituição um reconhecimento directo e obrigatório dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo (como querem alguns a partir da nova redacção do artigo 13.º-2)» (AA e ob cit, pág. 568).

 

14. Como se afirmou anteriormente, saber se as normas impugnadas violam o princípio da igualdade é uma questão cuja resposta se encontra na concepção do casamento adoptada. Se se entender o casamento como uma instituição social que é apresentada aos cônjuges com um significado relativamente estável, enquanto união entre homem e mulher, designadamente assente na função que lhe cabe na reprodução da sociedade, pode fazer sentido reservar o casamento aos casais heterossexuais. Pelo contrário, apenas se se adoptasse uma concepção do casamento como relação puramente privada entre duas pessoas adultas, sem qualquer projecção na reprodução da sociedade, a exclusão dos casais homossexuais surgiria necessariamente como discriminatória. Ora, como se disse, não foi essa a opção legislativa. 

Em conjugação com estas considerações, existem ainda outras razões que afastam também a possibilidade de uma decisão de inconstitucionalidade das normas impugnadas. Tais razões são especialmente relevantes num caso, como o dos autos, em que está alegadamente em causa a concretização do princípio da igualdade. Na verdade, a decisão que julgasse inconstitucional as normas impugnadas teria claramente um carácter aditivo, de duvidosa legitimidade em face do princípio da separação de poderes. É certo que o Tribunal tem utilizado, por vezes, quer no âmbito da fiscalização abstracta, quer no da fiscalização concreta da constitucionalidade, este tipo de decisão para defender o princípio da igualdade contra discriminações de certas categorias de pessoas. Todavia, tal utilização restringe-se, por via de regra, aos casos em que está em causa a expansão de um regime geral, em virtude da eliminação de normas especiais ou excepcionais contrárias à Constituição, ou ainda a extensão de um regime mais favorável que seja de configurar como uma solução constitucionalmente obrigatória. Nenhuma destas hipóteses se verifica no caso em apreço, pelas razões apontadas.

 

            15. Improcede, assim, a alegada violação do direito a contrair casamento e, ainda, a dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, sendo certo que é manifestamente deslocada a invocada violação da garantia de constituição e tutela de família, resultante do artigo 36.º, n.º 1, conjugado com o artigo 67.º da Constituição, já que nada obsta a que as recorrentes, mesmo sem a celebração jurídica do casamento, pudessem ou possam constituir “família”.

 

IV – Decisão

 

            16. Nestes termos, o Tribunal decide negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que toca à questão da inconstitucionalidade. Custas pelas recorrentes, fixando a taxa de justiça em 25 UC.

           

Lisboa, 9 de Julho de 2009

 

Carlos Pamplona de Oliveira

José Borges Soeiro

Gil Galvão (vencido conforme declaração junta)

Maria João Antunes (vencida nos termos da declaração que se anexa)

Rui Manuel Moura Ramos

 

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

Embora não sem hesitações, votei vencido quanto à decisão. Na verdade, conquanto reconheça que “a reforma da ordem jurídica cabe a órgãos de representação estrita da vontade popular, investidos no poder de fazer opções de natureza político-legislativa”, não se me afigura suficiente uma mera afirmação pretoriana de que não é permitido «retirar da Constituição um reconhecimento directo e obrigatório dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo” para afastar os argumentos que, em claro sentido contrário, resultam, a meu ver necessariamente – e independentemente de qualquer outra reforma da ordem jurídica -, do teor do artigo 36º, n.º 1, conjugado com a nova redacção do artigo 13º, n.º 2, ambos da Constituição da República Portuguesa. Assim, considerando imprestáveis para esta discussão os argumentos tradicionais respeitantes “à procriação e educação da prole”, que nem no Código Civil de 1966 tiveram acolhimento, bem como outros habitualmente invocados – e refutados, em termos que se me afiguram definitivos, em alguns dos pareceres juntos aos autos -, e não encontrando qualquer outra justificação para a solução que fez vencimento, que não a pretoriana afirmação já referida, votei no sentido da inconstitucionalidade da norma objecto do recurso.

Gil Galvão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

 

 

 

Votei vencida por entender que o artigo 1577º do Código Civil (CC), na parte em que determina que casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente, é inconstitucional, por violação dos artigos 13º, nº 2, e 36º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

 

Embora acompanhe o entendimento de que saber se a norma impugnada viola o princípio da igualdade é uma questão cuja resposta se encontra na concepção do casamento adoptada, tenho para mim que o casamento não é “uma instituição social que é apresentada aos cônjuges com um significado relativamente estável, enquanto união entre homem e mulher, designadamente assente na função que lhe cabe na reprodução da sociedade”, constituindo “um meio específico de envolver uma geração na criação da que se lhe segue e o único desses meios que assegura a uma criança o direito de conhecer e ser educada pelos seus pais biológicos”. Uma tal concepção não decorre da CRP, apontando até em sentido contrário a consagração constitucional do direito de constituir família, enquanto direito distinto do direito de contrair casamento (artigo 36º, nº 1); o princípio constitucional da não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36º, nº 1, primeira parte); a protecção constitucional da família (artigo 67º); e a protecção constitucional da paternidade e da maternidade (artigo 68º).

E tão-pouco decorre da lei. A lei configura o casamento como contrato celebrado entre duas pessoas que pretendam constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições do CC, à qual associa as notas da vinculação recíproca aos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência (artigo 1672º do CC), da comunhão de vida exclusiva (artigo 1601º, alínea c), do CC) e da perpetuidade tendencial (artigo 1773º do CC). Notas essenciais do contrato de casamento, cuja conformidade constitucional não é questionável, que não permitem o estabelecimento de uma qualquer ligação à orientação sexual de quem o celebra.

 

 A referência que é feita ao casamento no artigo 36º da CRP supõe, obviamente, uma determinada configuração do mesmo por referência à lei civil, havendo até remissão expressa para a lei em matéria de requisitos e de efeitos do casamento. Mas tal só pode significar uma configuração legal constitucionalmente conforme, nomeadamente quanto à concepção de casamento e à regulação, em concreto, dos requisitos do contrato. É por isso dispensável que a norma constitucional afirme explicitamente que a celebração do casamento por pessoas do mesmo sexo é permitida.

 

De acordo com o artigo 36º, nº 1, segunda parte, da CRP, todos têm o direito de contrair casamento em condições de plena igualdade. Isto é, todos têm o direito de, sem qualquer diferenciação, aceder ao que significa do ponto de vista jurídico (e simbólico) a celebração de um contrato entre duas pessoas que pretendam constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições do CC.

O artigo 1577º do CC na parte em que determina que casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente, priva o titular do direito previsto no artigo 36º, nº 1, segunda parte, da CRP em razão da sua orientação homossexual, o que é constitucionalmente ilegítimo (artigo 13º, nº 2).

Na falta de fundamento material suficiente para a diferenciação, é esta a conclusão que se me impõe.

Maria João Antunes